Não me lembro exatamente a data.
Um dia, no finzinho da tarde, sai de uma aula na Unicamp e, como de costume,
fui bandejar. Neste dia, sentei-me na mesa de costume. O bandejão estava cheio
e, por isso, inevitavelmente acabei me sentando de frente para um estranho
sujeito. A estranheza dele não estava na forma de se vestir, no seu corte de
cabelo ou em sua aparência física. O fato é que ele estava visivelmente
nervoso. Suava bastante. Estava trêmulo e consternado. Parecia sentir um
profundo incômodo. Cabisbaixo, não ousava encarar-me ou a qualquer outro ali
próximo, como se fugisse de nós; como se fossemos, na verdade, o motivo de todo
o seu desconcerto. Curiosamente, ao deixar a mesa para ir embora (deixando
praticamente toda a comida na bandeja), ele, sem me olhar nos olhos, pegou sua
sobremesa (lembro-me perfeitamente o que era: uma maria-mole) e a estendeu em
minha direção, e disse: "quer pra você? Eu não vou comer". Como não
tivesse repertório melhor para esboçar naquele momento, simplesmente aceitei, sem
entender muito bem o que, afinal, estava se passando. O fato é que fora a
primeira e talvez última vez que eu via aquele rapaz. Era um jovem, talvez uns
17 ou 18 anos. Como fosse início do primeiro semestre, julguei tratar-se de um
calouro que não conseguira ainda adaptar-se muito bem ao ritmo da universidade.
Obviamente, era bem mais que isso. O fato é que, na saída do almoço do dia
seguinte, por volta das 12h30, qual não foi minha surpresa ao me deparar com
uma cena no mínimo um tanto inusitada, sobretudo dentro da universidade. Junto
ao pé da torre da caixa d'água do ciclo básico (aquela ao lado do PB, onde
antes funcionava a Rádio Muda) pude ver perfeitamente um corpo estirado coberto
com um pano branco. Muitos curiosos ali presentes, inclusive eu, que me
aproximei um pouco para tentar entender aquela cena destoante. Não sou de
curiar tragédias, mas esse caso era excepcional. Talvez fosse um conhecido meu,
eu precisava saber. Não, não era. Por sorte... Não sei se devo dizer isso:
quanto egoísmo! Comentavam a assistentes sociais, ali presentes, entre si:
"Ele veio nos procurar. Não imaginava que ele fosse fazer isso".
Depois soube que se tratava de um aluno da história. De fato, recém-ingresso.
Relembrar esta história ainda me causa tristeza. Penso comigo "seria ele
na noite anterior, acossado pelo desespero, no bandejão?". E se fosse,
aquele gesto de oferecer-me sua sobremesa seria um gesto de socorro? Haveria
algo que eu pudesse ter feito? Nunca saberei. Outro dia, talvez na mesma
semana, encontrei numa das entradas do IFCH (aquela da cantina, de frente com o
gramado do ciclo básico) uma folha de caderno com escritos desconexos cujo tema
central era a tristeza, a desesperança em relação à vida e ao mundo, e uma
grande estima à morte. Não perco de vista que estes três acontecimentos possam
na verdade serem só tristes coincidências, e o rapaz da maria-mole ainda estar
vivo, e o dos escritos suicidas, por sua vez, já ter superado sua fase
romântica e hoje estar às voltas com a tragicidade da realidade do mundo
moderno. Não sei. Talvez nunca saberei. Tenham relação ou não, o fato é que,
por muito tempo, esta história toda mexeu comigo. Raras vezes a compartilhei
com alguém (infelizmente, não sou muito de me abrir com os outros; menos ainda
se o assunto for de tamanha tragicidade). E, como já foi dito outras vezes, em
outros momentos, são os excessos de sentimentos que movem minha capacidade
criativa. Dessa forma, todo este quadro certamente influenciou muitas das
minhas composições, como, por exemplo, a que segue abaixo, escrita pouco tempo
depois destas experiências. Quero deixar aqui registrado que esta história do
suicídio do estudante na caixa d'água, bem como a da outra estudante, que se
jogou da janela do banheiro do ônibus que levava uma turma para uma viagem de
campo, ainda são tidas por lenda, porque, de algum modo (e por algum forte
motivo), tais fatos são abafados. Em relação à história da estudante, não posso
afirmar que tenha mesmo acontecido. Deste caso do estudante, porém, fui
testemunha.
Disperso?
Divago?
Triste?
Não sei
Incompleto?
Descrente?
Carente?
Talvez
Um pouco
louco?
Autocrítico?
injusto consigo?
Pode até
ser
Não sei
Sem base?
Insuporte?
Trêmulo?
Inconsistente?
Bem sei
Doente da
mente?!
— seu cu!
Indiferente
com a mente da gente?
Estranho
do que se acha ao que se é?
Isto é!
Do pau do
Zefo à base não são segundos
É uma
vida
Da janela
do quarto ao chão da avenida
De uma
bala na agulha a um singelo jazigo
Da
superdose à overdose
Da
navalha a um simples corte
Da janela
do ônibus ao chão da rua
De um
pára-brisa quebrado ao asfalto
Esfolado
(também!)
Do fogo à
carne viva
Da água à
asfixia.
Não
sorria sua ironia:
Era uma
vida.
Não
repreenda a verdade
Havia
razões
Não vês?
Está dado.
Não
chores à toa
E não
morras também
Silêncio.
Um
momento.
Reflexões,
ilusão.
Uma
tristeza
Um
descontentamento
E eis um
clarão
Um
lampejo
Um
insight:
A vida
continua?
Mas,
como, se se passou uma vida?
Para isto
há razões
Bem como
houve para aquilo
O que é
está dado
E é só
isso