sexta-feira, 15 de junho de 2012

Apologia - Relbier Oliveira

Não me lembro exatamente a data. Um dia, no finzinho da tarde, sai de uma aula na Unicamp e, como de costume, fui bandejar. Neste dia, sentei-me na mesa de costume. O bandejão estava cheio e, por isso, inevitavelmente acabei me sentando de frente para um estranho sujeito. A estranheza dele não estava na forma de se vestir, no seu corte de cabelo ou em sua aparência física. O fato é que ele estava visivelmente nervoso. Suava bastante. Estava trêmulo e consternado. Parecia sentir um profundo incômodo. Cabisbaixo, não ousava encarar-me ou a qualquer outro ali próximo, como se fugisse de nós; como se fossemos, na verdade, o motivo de todo o seu desconcerto. Curiosamente, ao deixar a mesa para ir embora (deixando praticamente toda a comida na bandeja), ele, sem me olhar nos olhos, pegou sua sobremesa (lembro-me perfeitamente o que era: uma maria-mole) e a estendeu em minha direção, e disse: "quer pra você? Eu não vou comer". Como não tivesse repertório melhor para esboçar naquele momento, simplesmente aceitei, sem entender muito bem o que, afinal, estava se passando. O fato é que fora a primeira e talvez última vez que eu via aquele rapaz. Era um jovem, talvez uns 17 ou 18 anos. Como fosse início do primeiro semestre, julguei tratar-se de um calouro que não conseguira ainda adaptar-se muito bem ao ritmo da universidade. Obviamente, era bem mais que isso. O fato é que, na saída do almoço do dia seguinte, por volta das 12h30, qual não foi minha surpresa ao me deparar com uma cena no mínimo um tanto inusitada, sobretudo dentro da universidade. Junto ao pé da torre da caixa d'água do ciclo básico (aquela ao lado do PB, onde antes funcionava a Rádio Muda) pude ver perfeitamente um corpo estirado coberto com um pano branco. Muitos curiosos ali presentes, inclusive eu, que me aproximei um pouco para tentar entender aquela cena destoante. Não sou de curiar tragédias, mas esse caso era excepcional. Talvez fosse um conhecido meu, eu precisava saber. Não, não era. Por sorte... Não sei se devo dizer isso: quanto egoísmo! Comentavam a assistentes sociais, ali presentes, entre si: "Ele veio nos procurar. Não imaginava que ele fosse fazer isso". Depois soube que se tratava de um aluno da história. De fato, recém-ingresso. Relembrar esta história ainda me causa tristeza. Penso comigo "seria ele na noite anterior, acossado pelo desespero, no bandejão?". E se fosse, aquele gesto de oferecer-me sua sobremesa seria um gesto de socorro? Haveria algo que eu pudesse ter feito? Nunca saberei. Outro dia, talvez na mesma semana, encontrei numa das entradas do IFCH (aquela da cantina, de frente com o gramado do ciclo básico) uma folha de caderno com escritos desconexos cujo tema central era a tristeza, a desesperança em relação à vida e ao mundo, e uma grande estima à morte. Não perco de vista que estes três acontecimentos possam na verdade serem só tristes coincidências, e o rapaz da maria-mole ainda estar vivo, e o dos escritos suicidas, por sua vez, já ter superado sua fase romântica e hoje estar às voltas com a tragicidade da realidade do mundo moderno. Não sei. Talvez nunca saberei. Tenham relação ou não, o fato é que, por muito tempo, esta história toda mexeu comigo. Raras vezes a compartilhei com alguém (infelizmente, não sou muito de me abrir com os outros; menos ainda se o assunto for de tamanha tragicidade). E, como já foi dito outras vezes, em outros momentos, são os excessos de sentimentos que movem minha capacidade criativa. Dessa forma, todo este quadro certamente influenciou muitas das minhas composições, como, por exemplo, a que segue abaixo, escrita pouco tempo depois destas experiências. Quero deixar aqui registrado que esta história do suicídio do estudante na caixa d'água, bem como a da outra estudante, que se jogou da janela do banheiro do ônibus que levava uma turma para uma viagem de campo, ainda são tidas por lenda, porque, de algum modo (e por algum forte motivo), tais fatos são abafados. Em relação à história da estudante, não posso afirmar que tenha mesmo acontecido. Deste caso do estudante, porém, fui testemunha.

Disperso?
Divago?
Triste?
Não sei
Incompleto?
Descrente?
Carente?
Talvez
Um pouco louco?
Autocrítico? injusto consigo?
Pode até ser
Não sei
Sem base?
Insuporte?
Trêmulo?
Inconsistente?
Bem sei
Doente da mente?!
— seu cu!
Indiferente com a mente da gente?
Estranho do que se acha ao que se é?
Isto é!
Do pau do Zefo à base não são segundos
É uma vida
Da janela do quarto ao chão da avenida
De uma bala na agulha a um singelo jazigo
Da superdose à overdose
Da navalha a um simples corte
Da janela do ônibus ao chão da rua
De um pára-brisa quebrado ao asfalto
Esfolado (também!)
Do fogo à carne viva
Da água à asfixia.
Não sorria sua ironia:
Era uma vida.
Não repreenda a verdade
Havia razões
Não vês? Está dado.
Não chores à toa
E não morras também
Silêncio.
Um momento.
Reflexões, ilusão.
Uma tristeza
Um descontentamento
E eis um clarão
Um lampejo
Um insight:
A vida continua?
Mas, como, se se passou uma vida?
Para isto há razões
Bem como houve para aquilo
O que é está dado
E é só isso