Tudo
pronto para a cirurgia. O cirurgião aguardava apenas a chegada do anestesista, para
apagar a vitima. Viajava em devaneios encarando despercebido o moribundo,
quando foi desperto, surpreso, com o que este lhe disse:
—
Promete que, assim que eu morrer, você desce até a cantina, fuma um acompanhado de um café, enquanto
assobia ou cantarola uma canção qualquer?
O cirurgião,
que tentou fazer média do tipo concentrado, disse-lhe apenas que não fumava e
que vinha evitando o café. Mas pensou consigo: “morrer?! Eu nunca perdi um
paciente”, com o que, por extensão do raciocínio, chegou a que “nunca perdi um
paciente... Se um dia isso vier a acontecer, como será que vou me sentir?”.
—
Quero dizer — continuou o desgraçado enfermo — a vida não é nem boa nem má. Mesmo
que eu queira muito viver, se eu morrer, levo comigo que você terá feito o seu
melhor. E se eu morrer, ainda que você não tenha feito o seu melhor, ainda que
você não esteja em um bom dia... Quero dizer, a vida não é nem boa nem má, as
coisas acontecem. As coisas apenas acontecem.
O cirurgião
não sabia o que pensar. Aquele paciente era algum tipo de doido? Sentiu certo
desconforto com aquela conversa de morte.
—
Pra que time você torce, corintiano? — Tentou desconversar.
—
Na verdade, eu sou baiano. Mas como muita gente lá, eu torço pro Flamengo.
—
Escuta: o Corinthians já tem a maior torcida, não tem não?
—
Que nada! Isso é pretexto da mídia. O Corinthians é um fenômeno fabricado.
“Fenômeno
fabricado?!”, pensou novamente surpreso o cirurgião. E, involuntariamente,
tornou a pensar sobre o assunto de morte.
—
Mas isso que é belo — continuou o ferido — eu não vou bater de frente pra mudar
o mundo. Gosto de tomar uma bela taça de vinho tinto ao som de uma suave música
clássica: Aria Sulla, Sonata ao Luar, enquanto apenas percebo o mundo...
—
Nona Sinfonia...
—
Vivaldi eu acho meio estranho, mas até ouço às vezes. Você consegue pensar em
alguma música agora?
O médico
não quis ter razão, não quis discutir. Deixou-se levar pelos desejos da vitima.
Às vezes, seriam mesmo os seus últimos desejos. Não levaria mais do que cinco
minutos até que o anestesista adentrasse a sala.
—
Eu gosto daquele filme, Eu Sou a Lenda...
—
Redemption Song. Boa pedida! — E começou a assobia-la.
— Por
que parece que as pessoas gostam de pensar na tragédia humana, né? — Questionou
reflexivo o Doutor.
—
Se acontecer — Respondeu o infeliz — Tenta tirar o valor, a moral do fato. As
coisas não são nem boas nem más, as coisas são. O mundo acontece. Nosso olhar é
enviesado.
“Enviesado?!”,
surpreendeu-se novamente o médico. E não se conteve a questionar:
—
O que você faz?
— O
que eu faço?! Há algum tempo, essencialmente, uma única coisa: observo a vida.
Tento experienciar cada detalhe como se fosse um bom vinho...
—
Não, você não entendeu. Quero saber qual sua profissão.
—
Minha função, você quer dizer?
— Sim,
pode ser.
—
Já parou pra pensar no sentido em que esta palavra é usada?
—
Você é filósofo? Psicólogo? Escritor...
—
Sofista — respondeu o quase-morto — Se existisse essa função, gostaria de ser
sofista. Outro dia eu tive um sonho — prosseguiu ele — Sonhei que Deus me
dizia: “dê a cada um o que é seu, independente se pareça justo ou não”.
Sócrates... Adoro esse cara. Conheci um homem certa vez que fez todo um
trabalho monumental pra demonstrar que Sócrates na verdade era um sofista,
apesar de ter passado a vida inteira tentando negar isso. O que você nega que
é? Por que você nega o que é? Talvez a graça esteja nisso. Não precisa ter
valor. O olho humano estraga o mundo; o corrompe, o tortura; quer conformá-lo
ao seu desejo...
—
Só um momentinho... — disse-lhe o cirurgião indo até a porta sondar a
localização do anestesista. Aquela conversa estava muito doida e ele queria
acabar logo com ela. Eis que chegou o anestesista.
—
Bem, acho que agora podemos começar. — disse o médico. Augusto, deitado,
virou-se para o anestesista e perguntou:
—
Você fuma? — O anestesista fez expressão de quem admite um erro, e concluiu:
—
É uma droga! Estou tentando parar, mas às vezes penso: que se foda! — e riu. Todos
riram.
—
Que bom! — disse o enfermo.
—
E você?
—
Sou alérgico a fumaça.
—
Quer dizer alguma ultima coisa antes que eu lhe apague? — Brincou o
anestesista. Augusto pensou calmamente por um instante. Depois disse:
— Que
bom! Estou satisfeito. — Sorriu um sorriso discreto. A anestesia lhe foi dada.
Oito
horas e quarenta e cinco minutos depois. A porta da cantina se abre. Vestindo uma
roupa social um pouco amarrotada, Heitor entra carregando sua maleta de médico
após mais um dia extenuante de serviço. Senta-se junto ao balcão.
—
O mesmo chá? — Pergunta o atendente. Passando as mãos pelo rosto, perplexo,
reflexivo, Heitor responde:
—
Você não teria algum vinho?
—
Desculpe, senhor, não vendemos bebidas alcóolicas.
—
Então me vê um café.
—
Voltou? — Heitor apenas fez que sim com a cabeça.
O
café veio. O atendente ia saindo...
—
Escuta, você teria um cigarro?
—
Graças a Deus, não fumo.
—
Só mais uma coisa — pediu Heitor. Tendo conseguido a atenção do atendente,
meneou a cabeça para si mesmo como quem custa a acreditar em algo, e, por fim,
disse:
—
Conhece alguma música clássica? Bach... Beethoven?
—
O senhor está bem? — Questionou, preocupado.
—
Aria Sulla...?!