terça-feira, 25 de outubro de 2011

O Santo - Relbier Oliveira

“Um dia, eu estava sentado no meio do caminho, como de costume, pedindo dinheiro, como de costume, me sentindo um lixo pior do que as guimbas esfoladas pelos sapatos apertados dos transeuntes apressados com suas vidas, quando eis que uma pessoa se aproximou de mim. Não vi direito quem era. De que me importaria: acaso conheceria? Faria distinção entre as diferentes feições e estilos e vaidades e egocentrismos que geralmente passam por aqui onde os lixos se acumulam? Estranho, não me incomodei com sua presença”.

“Em condições normais, eu faria cara feia, apesar da esmola. Se viesse falar, então! Me dar sermão, me dar conselhos, falar de Deus... vixi! Era de cusparada a palavras de baixo calão”.

“Sangue no zói até umas horas. Porque é assim: não sou melhor que ninguém, é verdade, mas cansei de ser usado de figurante na foto de Bom Samaritano. Você sabe que, no fundo, a única piedade é com eles mesmos, pelo sacrifício que estão fazendo vindo falar essas coisas, vindo querer dizer que somos iguais, que eles não veem distinção, e o caralho”.

“Posso me sentir malzão depois. Pô, um dia eu já tive dignidade, sei como é. Mas, meu: não tenho mais nada a perder. Se quiser, depois, eles sabem onde eu durmo, onde eu me escondo. Coisa que não falta é gente pra fazer mal nesse mundo. E sabe como é que é, né: a gente tá aqui pra isso mesmo. Pra morrer e dar graças a Deus. É o melhor que há, é um presente. Mas o seguinte, eu vim pra cá já sabendo dos riscos, sabe qual é? Na verdade, eu quis largar tudo, sair dessa porra. – Porra, meu, emprego de merda desde os oito anos, desde que eu me entendo por gente... se é que eu já fui gente alguma vez nessa vida. Meu, muié relaxada! Porquera! Nojera! Os fi tudo virando tranquera, querendo bater na gente. Depois de todo o caralho que eu fiz pra eles. Meu, passei fome pra tentar dar um futuro melhor pra eles, e é assim que eles agradecem? Ai vem um filho da puta desses me dizer chavão. Ah! Vá pra puta que o pariu! Irrita mesmo, meu, de boa. Tá! A intensão pode até ser boa. Mas, como dizem, dela o inferno tá cheio”.

“Meu, foi mais ou menos assim: não era bem uma pessoa, era uma presença, sei lá. Tinha uma mão. Mas não era bem uma mão, manja?! Eu não sei explicar. Sei lá, cara, parece que tudo à minha volta perdeu a importância, tinha importância mínima, manja?! Sabe, tipo: a mente ficou vazia, velho... E eu não tinha tomado nada, não tinha fumado nada. Cheirado? Vixi, nem sei mais o que é isso: falta capital, sabe qual é? Cara, eu não sei explicar. Foi sinistro. Foi bom, velho, foi bom... foi bom pra caralho. Tipo, essa vida de merda toda fez todo o sentido. Manja, tipo... um copo? Mais ou menos assim a parada... Não, uma garrafa, daquelas toda retorcida. Ai você põe a água e ela se preenche toda, e faz sentido. Sabe, estar em todos os lugares ao mesmo tempo sem sair do lugar, sem estar em nenhum... Sem corpo, sem raça, sem identidade, sem essas paradas toda ai, sem caralho nenhum. Tipo, muita velocidade... muita! Um calor que não queima, que aquece, que conforta. Uma luz de todas as cores, num brilho alaranjado... Me lembrava um circo. Cara, eu nunca fui num circo. Eu nunca vi um elefante, uma girafa, mas elas tavam lá. Sabe, o tempo... durou minha vida toda e mais: o tempo que eu ainda nem vivi e o que eu nunca viverei, o antes o depois o agora, e o quarto. É, o quarto, manja? O que está ainda além. E eu só segurei aquela mão, velho. Ele disse “vem comigo”, e eu não fui, manja? Por que eu não fui, brow? Por que eu não fui? Aqui ninguém me dá valor. Olha ai onde estou, jogado na merda, tendo que fumar guimba usada, dessas bocas fididas, nojentas... boca de buceta suja. Ah! Toma no cu, brother. O que que eu ainda queria fazer aqui, jovem, diz ai? Eu não sei, sérião mesmo, eu não sei... Ter que esperar o próximo, agora, meu! Já era. Se pá, sorte assim só uma vez na vida. Eu troco meu bilhete premiado da Mega Sena, que tá aqui no bolso, por outra chance, manja? Mas não sei, doido... não sei. Acho que, se pá, eu faria tudo de novo, tudo do mesmo jeito, sabe? Chegaria lá, de novo, em cima da hora, pra chutar pro gol, e pararia. Por que, brother? Por quê? Cara, eu não tinha isso. Foi depois dessa parada ai que eu fiquei assim. Sei lá, parece que eu aprendi a gostar de mim. É estranho. Sei lá, é como se eu estivesse com o bolso cheio de dinheiro... É mais. É mais que isso. Manja um carro? Tipo assim, um 147... Pô, muito loco, eu sempre quis ter um desses ai. Mas pensa em um zuado, bem zuadão mesmo. Então, sei lá: de repente você empurra ele num lava-a-jato (empurra, né, porque o coitado não deve tê nem mais motor, de tão zuado que tá), ai sai do outro lado uma Ferrari, novinha, com o Ronaldinho e tudo. Vixi, cara, o bagulho é loco. Mas, meu, sabe, eu não sei explicar. Então, o 147 era eu, manja? Essa parte você entendeu, né? Tipo, eu quero estar aqui. Pode estar ruim o quanto for, eu quero estar aqui. Não que sei lá onde eu ia ir fosse pior, mas eu quero estar aqui agora. Talvez antes eu quisesse qualquer coisa, melhor, pior, qualquer coisa. Talvez a morte, sei lá. Mas agora não, agora eu quero estar aqui. Sei lá porque, jovem... Tipo, e é isso o que me intriga. Dá vontade de sair, pular, cantar, só de lembrar... Meu, só de lembrar. É que, contando, assim, não dá pra você entender direito, manja? Ah! Sei lá, brother. Mas, apesar de tudo, estou cansado, chato, velho e ranzinza. Desculpa ai, vai... Você deve tá achando que eu sou doido, sei que tá. Mas, dá nada não, meu. Eu tô em paz agora, tô na minha. Sei o que vi, mas te entendo, brow. Seguinte: fica com Deus, ai, amigo. Vô indo nessa. Quero meu colchão. Depois a gente se fala. Te cuida! Fui!”.