sexta-feira, 3 de junho de 2011

A extensão de um instante - Relbier Oliveira

Hugo sai eufórico do edifício onde estivera para a sua enésima entrevista de emprego. Obviamente, desta vez o saldo foi positivo. Desde que concluíra sua segunda graduação, nem mesmo com o fato de sua boa-aparência, erudição, fácil sociabilidade e sua relativa fluência em inglês, espanhol e alemão (além de um conhecimento satisfatório do italiano e do francês), conseguia um emprego a contento.

Não fazia muito, Hugo arriscara sua amizade com Samantha, a quem tinha em grande consideração, perguntando-lhe, em tom de brincadeira (daquelas típicas brincadeiras com fundinho de verdade) em quais condições ela se casaria com ele. A bem da verdade, Hugo era louco por ela desde os tempos da faculdade, quando estudaram juntos; e se via capaz de tudo, inclusive de sufocar todo esse seu amor, para estar sempre a seu lado, mesmo que somente como amigo, e, por isso, jamais ousara ir muito longe; às mais das vezes, aquelas indiretas inofensivas que, apesar disso, retornavam na forma de culpa e arrependimentos. Hugo melhorara muito enquanto pessoa: consigo mesmo e com os outros. Ele era agora quase que um exemplo de ser humano. E a resposta de Samantha, aliada ao recente emprego, vinham coroar definitivamente sua história de vida. Ela dissera: “o que temos é muito especial. Já somos muito mais que amigos. Arranje um bom emprego e eu me caso com você”. Desde então, Hugo enlouquecera, e fizera de tudo imaginável para satisfazer essa condição. Até para vereador se candidatara.

Saindo daquele lugar, tudo o que ele mais queria (ou, mais especificamente, só o que ele queria) era comunicar a Samantha este fato, e principiar ser feliz para o resto da vida. Hugo, irradiante, avança sobre a rua em direção ao telefone público do outro lado (pois seu celular estava sem crédito); aquela pacata rua que infinitas vezes ele atravessara, inclusive de olhos fechados. Mas eis que um pressentimento lhe sobreveio: lembrou-se que nos últimos tempos tal rua se transformara, e que veículos das mais diversas naturezas agora transitavam por ali. Com a periferia do seu olho direito, pôde ver que algo estranho, grande e pesado se aproximava apressadamente de si. Com toda a extensão do olho esquerdo, por sua vez, captou o movimento normal de todos os transeuntes que por ali passavam, até mesmo o anormal de uma senhora com olhar atônito em sua direção, com cara de pavor, como se gritasse algo para ele. Não demorou muito e Hugo percebeu que era hora de, mais do que se lamentar, fazer o que sempre ouviu dizer que se devia ser feito nesse momento, nesse nunca esperado e temível momento. Sem nem pensar na impossibilidade lógica do que pretendia naquele instante, simplesmente o fez: com a velocidade de algo nunca visto e talvez nem mesmo nunca pensado, perpassou por seus trinta e poucos anos de existência rememorando os pontos brilhantes de sua existência, mas deteve-se especialmente nos acontecimentos dos últimos cinco anos. Se tivesse um pouco mais de tempo, apreciaria uma bela xícara de café recém-passado para curtir profundamente aquele momento definitivamente único, mesmo ciente do fato de ter parado de tomar café há pelo menos cinco anos. Nesse período, Hugo também parou de ser uma pessoa medíocre, acuada, com medo de tudo (e cada vez com medo de mais); parou de ser depressivo, antissociável, apático e insosso. Empreendeu, decididamente, uma mudança, talvez mais difícil do que o transporte do mundo todo para próximo de outro sol. Foi capaz, inclusive, de mudar o seu biológico. Nesse período, conheceu o verdadeiro (talvez, porque último) amor da sua vida; e, apesar de nunca tê-la como le gusta, aprendeu a passar a maior parte do seu tempo de vigília na realidade, abandonando quase que completamente toda fantasia vã. Planejou casamento, filhos, viagens: um sonho burguês, é verdade. Mas, afinal, que mal há nisso? Enfim, estava pronto para o mundo, completo. Pronto para começar a viver o que até então não vivera satisfatoriamente. Atrasou o gozo para colher mais prazer adiante. Valeu a pena? Apesar de sequer ter tido tempo de ver o que fatalmente passou por cima de si, todo seu raciocínio nesse ínfimo instante lhe indicou que sim: consumou-se plenamente feliz, plenamente amado, plenamente realizado. E chegou até mesmo a pensar que fizera tudo a tempo, antes que tudo acabasse.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Saldo - Relbier Oliveira

E o que me resta?

Apagaram a luz do dia.

Mais um ano acabou,

menos um ano de vida.

E o que me resta?

De tudo o que você podia me dar

peço apenas um poema sobre mim,

uma oração e um abraço.

O que faltou?

O que você não me deu?

Colegas, comemoração, você.

Mas o que se podia ter feito para me fazer feliz?

Menos um ano de vida,

dias como todos os outros.

E amanhã tudo mais igual que sempre.

Porém antes um abraço como gesto de carinho.

O que há demais nisso?

Se envolver com quem se gosta sem definições.

Amar como se ama mais ou menos e se deixar ir além.

O meu presente é você em todos os sentidos possíveis.

Você que estava e que não estava comigo.

Porque são raros e caros.

Só por isto persisto.

Assim, outros dias mais se acenderam.

Haverá comemoração, colegas.

Menos anos de vida? Sim.

Mas me restam vocês,

que me dão abraços e oram por mim.

O poema vos dedico, meus amigos.

Não sei orar, mas faço o que posso.

E o que pôde ser feito certamente o foi.

Sou feliz por tudo isso.

Cada dia como todos os outros

são dias únicos aos seus lado.

Um abraço é pouco como gesto de carinho.

Obrigado, Deus, por não me deixar sozinho.

17/05/1985 (2011)