Saimon
saiu de detrás da torre que sustentava a casa e se surpreendeu ao ver o corpo
estirado no chão, embebido em sangue. Desvirou-o com a sola do pé. Pisou-lhe o
abdômen, apreciando sua face, enquanto ele mesmo fazia cara de nojo para o que
via. Olhou, então, para o céu, como que questionando aos céus o ocorrido. Depois,
pôs-se a puxar o cadáver por uma das pernas até a beira da floresta, onde uma
cova já aberta aguardava o defunto. Parou-o lateralmente a ela e, com os pés, o
fez rolar para dentro: caiu com o rosto virado para baixo. Pôs-se então a
cobri-lo com a terra amontoada ao lado. Acabado o serviço, esfregou as mãos
sujas de terra nas bases da calça branca. Tomou de volta o paletó branco que pendurara
num galho e o vestiu. Por fim, com certa dificuldade, pegou uma grande lápide retangular
de mármore e pôs sobre o túmulo. Nela, havia apenas a inscrição “VOCÊ”, em
letras garrafais. Bateu as mãos, como que simbolizando a missão cumprida.
Admirou por um instante ou dois a chegada de mais uma chuva que se anunciava, em
tempo suficiente para procurar nos bolsos algum ultimo cigarro e acendê-lo. Em passos
brandos, entrou pela única porta da torre.
Subindo
pela escada curva, parou no topo ao escutar um gemido. Achou estranho, pois
cria-se sozinho ali. Munido apenas da reminiscência do som, buscou localizar
sua origem, mantendo os ouvidos em riste, feito cão; a postos, caso outro som
fosse emitido. Percebeu que, apesar de sempre estar por ali, muito pouco
conhecia do lugar. Corredores e mais corredores. Salas e mais salas. Diversos quartos.
Tudo mobiliado e, apesar do seu desdém, muito bem decorado: Saimon gostava
muito daquele lugar, passava a maior parte do seu tempo ali. Se você o quisesse
encontrar, o lugar mais provável – ou o primeiro lugar a se procurar –
certamente deveria ser ali.
Por
sorte, a origem do som fez o favor de emitir outro gemido, exatamente quando
Saimon passava ao lado da porta onde provavelmente aquela coisa estaria.
Primeiro,
colou o ouvido na porta, a fim de sondar melhor o que poderia haver lá dentro. Depois,
torceu a maçaneta, então pôde perceber que a porta estava trancada. Olhou para
os lados enquanto pensava numa solução para este obstáculo. Já sem paciência,
optou por valer-se do que tinha “em mãos” naquele momento: meteu o pé
violentamente na porta, arrombando-a, o que causou um ruído fortíssimo que
ecoou por todos os cantos da casa e fez na floresta as aves esvoaçarem.
Com
a “pezada”, a porta se abriu e, ao bater na parede, voltou e se fechou outra
vez. Entretanto, já não estava mais trancada (ou, pelo menos, não mais se podia
trancar sem fechadura).
Do
vislumbre que o primeiro chute propiciou, Saimon guardava na memória uma cama,
estantes de livros por todas as paredes e uma enorme janela com grades, que
permitia a entrada da luz em abundância. Aparentemente, não havia ninguém lá
dentro. Mas o som, sem engano, havia vindo de lá. Foi então que, enfim, decidiu
entrar.
Prestes
a tocar a maçaneta outra vez, sentiu-a ser forçada também pelo outro lado. Com a
força do susto, e em sobressalto, pulou pra trás. Nesse instante, a porta se
abriu vagarosamente, até tocar e parar na parede. Uma figura inteiramente
coberta por um espesso pano preto surgiu vindo da lateral do quarto. Apenas seus
olhos eram possíveis ver. Tinha por volta de um metro e meio e, pelo olhar,
aparentava estar assustada.
─
Que... Que porra é você? – Perguntou Saimon, já apavorado. A pequena criatura
deu alguns passos, até alcançar o corredor. Analisou os dois caminhos possíveis
e, com voz de mulher, disse apenas “Entre!”.
As
pernas de Saimon, instintivamente, tencionaram a tira-lo dali num pinote nunca
antes visto, mas sentiu em seu coração que já não vira poucas coisas nessa sua
existência, e que o medo, em toda e a cada próxima vez, quase sempre esteve e
haveria de estar presente: fugir para onde? Fugir de que? Já não havia mais
segurança em existir.
─
E por que eu faria isso? – Questionou.
─
Porque é o que quer fazer. Se veio até mim é porque quer algo de mim.
─
Eu vim porque sou curioso, só por isso.
─
Então não quer entrar?
─
Não disse que não quero. Só disse que não foi pra isso que vim aqui. Mas acho
que não quero não.
─ Como
posso agradecer por ter me libertado?
─
Você estava presa? Acha! Não me deve nada. Mas, por que estava presa? Foi o
vento quem te trancou?
─
Foi o Homem.
─
Que homem?
─
O Humano.
─
O homem humano? Todos os homens são humanos... (bem, eu acho).
Sem
mais conversa, a estranha criatura correu feito queniano e sumiu rapidamente da
vista de Saimon, que nem pensou em tentar detê-la ou acompanha-la.
Já recomposto do susto inicial, e sem entender
nada do que acabara de acontecer, sentou-se no chão, exausto. Voltou então a
olhar para dentro do quarto, que, para sua surpresa, não havia mais nada dentro,
nem mesmo janela.
─
Mas, que porra é essa! – Exclamou. Pôs-se novamente de pé e decidiu-se por
explorar o estranho quarto. Primeiro a cabeça; até que tomou coragem e entrou
por inteiro. Realmente, não havia mais nada lá. Mas... Espere: num dos cantos
havia uma pequena luz, como uma fresta, exatamente na quina da parede. Novamente,
a curiosidade o moveu, e ele caminhou até lá. Agachou-se para olhar através dela.
Foi então que a voz da estranha criatura novamente se fez presente. Da porta, disse:
“eu disse que você queria entrar. Eu disse que queria algo de mim”. Assustado,
Saimon apenas pode vê-la fechar a porta. A escuridão se fez densa: até a consciência
de Saimon nela desapareceu.