sábado, 27 de dezembro de 2014

Shantiti - Capítulo 6 (Relbier Oliveira)



Saimon saiu de detrás da torre que sustentava a casa e se surpreendeu ao ver o corpo estirado no chão, embebido em sangue. Desvirou-o com a sola do pé. Pisou-lhe o abdômen, apreciando sua face, enquanto ele mesmo fazia cara de nojo para o que via. Olhou, então, para o céu, como que questionando aos céus o ocorrido. Depois, pôs-se a puxar o cadáver por uma das pernas até a beira da floresta, onde uma cova já aberta aguardava o defunto. Parou-o lateralmente a ela e, com os pés, o fez rolar para dentro: caiu com o rosto virado para baixo. Pôs-se então a cobri-lo com a terra amontoada ao lado. Acabado o serviço, esfregou as mãos sujas de terra nas bases da calça branca. Tomou de volta o paletó branco que pendurara num galho e o vestiu. Por fim, com certa dificuldade, pegou uma grande lápide retangular de mármore e pôs sobre o túmulo. Nela, havia apenas a inscrição “VOCÊ”, em letras garrafais. Bateu as mãos, como que simbolizando a missão cumprida. Admirou por um instante ou dois a chegada de mais uma chuva que se anunciava, em tempo suficiente para procurar nos bolsos algum ultimo cigarro e acendê-lo. Em passos brandos, entrou pela única porta da torre.
Subindo pela escada curva, parou no topo ao escutar um gemido. Achou estranho, pois cria-se sozinho ali. Munido apenas da reminiscência do som, buscou localizar sua origem, mantendo os ouvidos em riste, feito cão; a postos, caso outro som fosse emitido. Percebeu que, apesar de sempre estar por ali, muito pouco conhecia do lugar. Corredores e mais corredores. Salas e mais salas. Diversos quartos. Tudo mobiliado e, apesar do seu desdém, muito bem decorado: Saimon gostava muito daquele lugar, passava a maior parte do seu tempo ali. Se você o quisesse encontrar, o lugar mais provável – ou o primeiro lugar a se procurar – certamente deveria ser ali.
Por sorte, a origem do som fez o favor de emitir outro gemido, exatamente quando Saimon passava ao lado da porta onde provavelmente aquela coisa estaria.
Primeiro, colou o ouvido na porta, a fim de sondar melhor o que poderia haver lá dentro. Depois, torceu a maçaneta, então pôde perceber que a porta estava trancada. Olhou para os lados enquanto pensava numa solução para este obstáculo. Já sem paciência, optou por valer-se do que tinha “em mãos” naquele momento: meteu o pé violentamente na porta, arrombando-a, o que causou um ruído fortíssimo que ecoou por todos os cantos da casa e fez na floresta as aves esvoaçarem.
Com a “pezada”, a porta se abriu e, ao bater na parede, voltou e se fechou outra vez. Entretanto, já não estava mais trancada (ou, pelo menos, não mais se podia trancar sem fechadura).
Do vislumbre que o primeiro chute propiciou, Saimon guardava na memória uma cama, estantes de livros por todas as paredes e uma enorme janela com grades, que permitia a entrada da luz em abundância. Aparentemente, não havia ninguém lá dentro. Mas o som, sem engano, havia vindo de lá. Foi então que, enfim, decidiu entrar.
Prestes a tocar a maçaneta outra vez, sentiu-a ser forçada também pelo outro lado. Com a força do susto, e em sobressalto, pulou pra trás. Nesse instante, a porta se abriu vagarosamente, até tocar e parar na parede. Uma figura inteiramente coberta por um espesso pano preto surgiu vindo da lateral do quarto. Apenas seus olhos eram possíveis ver. Tinha por volta de um metro e meio e, pelo olhar, aparentava estar assustada.
─ Que... Que porra é você? – Perguntou Saimon, já apavorado. A pequena criatura deu alguns passos, até alcançar o corredor. Analisou os dois caminhos possíveis e, com voz de mulher, disse apenas “Entre!”.
As pernas de Saimon, instintivamente, tencionaram a tira-lo dali num pinote nunca antes visto, mas sentiu em seu coração que já não vira poucas coisas nessa sua existência, e que o medo, em toda e a cada próxima vez, quase sempre esteve e haveria de estar presente: fugir para onde? Fugir de que? Já não havia mais segurança em existir.
─ E por que eu faria isso? – Questionou.
─ Porque é o que quer fazer. Se veio até mim é porque quer algo de mim.
─ Eu vim porque sou curioso, só por isso.
─ Então não quer entrar?
─ Não disse que não quero. Só disse que não foi pra isso que vim aqui. Mas acho que não quero não.
─ Como posso agradecer por ter me libertado?
─ Você estava presa? Acha! Não me deve nada. Mas, por que estava presa? Foi o vento quem te trancou?
─ Foi o Homem.
─ Que homem?
─ O Humano.
─ O homem humano? Todos os homens são humanos... (bem, eu acho).
Sem mais conversa, a estranha criatura correu feito queniano e sumiu rapidamente da vista de Saimon, que nem pensou em tentar detê-la ou acompanha-la.
 Já recomposto do susto inicial, e sem entender nada do que acabara de acontecer, sentou-se no chão, exausto. Voltou então a olhar para dentro do quarto, que, para sua surpresa, não havia mais nada dentro, nem mesmo janela.
─ Mas, que porra é essa! – Exclamou. Pôs-se novamente de pé e decidiu-se por explorar o estranho quarto. Primeiro a cabeça; até que tomou coragem e entrou por inteiro. Realmente, não havia mais nada lá. Mas... Espere: num dos cantos havia uma pequena luz, como uma fresta, exatamente na quina da parede. Novamente, a curiosidade o moveu, e ele caminhou até lá. Agachou-se para olhar através dela. Foi então que a voz da estranha criatura novamente se fez presente. Da porta, disse: “eu disse que você queria entrar. Eu disse que queria algo de mim”. Assustado, Saimon apenas pode vê-la fechar a porta. A escuridão se fez densa: até a consciência de Saimon nela desapareceu.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Shantiti - Capítulo 5 (Relbier Oliveira)



─ Meu nome é Saimon. Deveria ser escrito com “i”, mas minha mãe é latina. Não vou contar minha história, essas coisas são muito chatas.
Uma vez, eu meditava sobre minha moto através de uma estrada de terra por dentro de uma mata fechada. Só queria um lugar pra fumar e pensar mais sobre a vida. Do nada, travei as duas rodas, frenei alguns metros até parar, enfim, envolto duma nuvem rala de poeira que me alcançara. Eu devia estar em transe, mas não estava. Pensei comigo mesmo “porque diabos fiz isso?”.
─ Foi quando encontrou a caverna?
─ Porra, Heitor! Guenta ai que eu já chego lá. Acho que eu estava com sede.
─ Não era aquele rio sujo que ladeava a estrada...?
─ Eu não disse que pretendia beber a água daquele rio, só disse que achava estar com sede.
─ Por que raios você correu feito um louco pra dentro da mata?
─ Cara, me deixa contar a história?
─ Por que disse que se chamava Saimon? Com quem está falando, afinal?
─ Ah! Cara! Foda-se! Esquece essa história.
Heitor se levantou da luxuosa poltrona do centro da biblioteca, caminhou até a estante de livros e retirou um volume grosso de capa preta. Analisou-a por alguns instantes antes de abri-lo. Surpreendeu-se ao ver que todas as páginas estavam em branco.
─ Por que é que imagino que todos os outros livros também estarão em branco?
─ Heitor, Heitor, Heitor. Sua lógica é curiosa.
Heitor se dirigiu então até a ampla mesa do escritório, reparou os objetos nela disposta. Sentou-se na cadeira, balançou-se por algum instante, pensativo. Tomou na mão a caneta-pincel. Achou curiosa essa coisa tão antiga. Molhou-lhe a ponta na tinta, se certificando de que funcionaria: fez um x no próprio braço. Separou para si um papel branco que jazia sobre um montante sobre a mesa e principiou a rabisca-lo. De um sobressalto, pôs-se de pé, lançando a cadeira para trás: ─ Mas que diabos é isso! ─ exclamou, exaltado. A caneta não marcara o papel. ─ Eu não... Eu não...
─ Você está pálido, Heitor.
─ Como saio daqui?
─ Da mesma forma como entrou. Mas já quer ir embora?
Heitor se mostrava confuso. Seu andar era vago, sua mente parecia descrer em tudo.
─ Posso caminhar por ai?
─ Heitor, isso aqui não é uma prisão...
─ Mas é a sua casa!
─ Você acha que eu moro aqui? Sério mesmo que você acha que eu moro aqui? Não, Heitor, eu apenas estou aqui. Sei lá se alguém mora aqui. Eu não teria tão péssimo gosto para decoração.
Heitor deu-lhe as costas, consternado. Saiu pelo amplo portal de madeira da biblioteca. Notou estar em uma espécie de casarão, ou mansão. Um palacete. O teto era extremamente alto. Os móveis eram rústico, em sua grande maioria de madeira, mas muito bem trabalhados. Carpetes e tapetes. Amplos vitrais que permitiam a luz do dia adentrar e tornar o ambiente mui claro.
Heitor desceu as escadas de mármore branco: escada curva, que o levou ao que deveria ser a sala de estar. Aquele lugar parecia estar vazio, apenas ele e Saimon presentes.
Achou a cozinha. Caminhou em direção a pia, tinha sede. Mas a cada passo que dava em direção a ela, algo na janela parecia o deixar cada vez mais estarrecido. Ao se aproximar, parecia não crer no que via: um mar de selva. A casa estava de tal forma alta, que a vista lhe permitia ver a copa de todas as árvores. Apressou-se então em sair à pequena varanda que havia contígua à cozinha. Apoiando-se no parapeito, ficou surpreso ao ver a altura que o separava do chão. "Para onde daria a porta de saída?”, pensou consigo. Correu em direção a ela. Estaria trancada? Girou a maçaneta. Abriu.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Shantiti - Capítulo 4 (Relbier Oliveira)



─ A única mulher que amei de verdade me traiu. Nunca me amou. Apenas me usou para tentar esquecer aquele que ela julgava ser o grande amor da sua vida desde os tempos da mais tenra adolescência. Me deixou um filho desse cara quando resolveu amar de verdade uma outra pessoa. [Riu-se. Um riso como que de descrédito]. Acho que ninguém jamais vai entender. – E se calou. Ficara em silêncio por longo instante. ─ Posso fumar aqui?
─ Aqui você pode fazer o que bem quiser, já disse. Sinta-se a vontade.
─ E hoje, aquela criança é a única coisa com que me importo. Mas me sinto culpado... O que fui na vida dela, um erro? Apenas isso: um erro? Eu não queria que ela tivesse morrido... [A voz embargou, o choro subia-lhe à garganta. Respirou fundo olhando o teto]. Ela fugia de mim feito o diabo da cruz! Me faz odiar quem sou. Daria a minha vida para que ainda estivesse viva. Qual a lógica desse mundo?
─ Culpa? Sente culpa, Heitor? Qual foi seu pecado?
─ Existir. Encontrar ela, ser o azar da vida dela. Tê-la atrapalhado o tanto que atrapalhei. Talvez ela ainda estivesse viva.
─ Deve ser infernal pensar assim. Você não se diverte?
─ Como assim?
─ Sabe, sua vida me parece um lixo! Eu também iria querer morrer. A existência deve ser muito barata mesmo: que desperdício!
─ Está me julgando?
─ Estou pensando em voz alta. Não sou seu terapeuta e nem Deus pra resolver o seu problema. Se espera isso de mim é melhor ir embora. Se tenho algo a te oferecer, saiba: é contra a minha vontade, minha existência já é um fardo considerável.
─ Me divertir...? Como assim?
─ Sabe... A vida é uma bosta ou está uma bosta?
─ Por que é que pressinto a chegada de um xeque-mate nessa sua fala...?
─ Deve ser o seu sentido paranoico.
─ Saimon, uma vez você me disse “o outro está que se dane pra você! O único outro que deve se importar com a sua vida é aquele que você projeta de si; aquele que te adula ou te destrói”.
─ Se disse, já não é meu. Aonde você quer chegar?
─ Você não se sente sozinho?
[Outro silêncio imperou]
─ Veja, Heitor: e se Twain estiver certo? E se a existência for só um pensamento? E se, e se, e se? E se?
─ E outra vez também me disse “ajo como a água que escorre da montanha: desvio dos obstáculos buscando o melhor caminho; se não consigo contornar, transbordo, mas não paro, porque parar é morte! E sou vida!”. Sabe Saimon, queria ser como você, queria ser vida...
─ Queria?
─ É. Queria. Mas, escolhemos o que desejar? Escolhemos o querer?