Heitor
pousou suavemente sua xícara sobre o pires buscando fazer o mínimo de barulho
possível, de modo que seus ouvidos estivessem suficientemente desimpedidos para
definirem o familiar som que captaram vindo de fora. Atento a esse som, Heitor
se levanta, curioso, espreita pela pequena janela da cozinha e avista ainda
longe do seu pequeno porto uma lancha que se aproxima vagarosamente de sua
pequena ilha particular.
De
fato, a ilha era bastante pequena. Mas, convenhamos: quantos humanos têm uma
ilha para chamarem de sua?
A
ilha tinha o formato de um possível ovo recém-quebrado na frigideira, ou talvez
o formato de uma ameba em movimento, como queiram. No centro (se é que há um
centro em qualquer coisa assim) havia um morro que se elevava uns 10 metros do
nível do mar. Ao redor da ilha, não havia nada entre a água e a água de todos
os lados que não fosse a própria ilha. Em outras palavras, ela estava
localizada precisamente no meio do nada, em lugar nenhum. Sobre o morro, Heitor
erguera uma confortável casa, que tinha no último cômodo da torre principal uma
singela cozinha. Heitor sempre dera mais importância afetiva ao cômodo da
cozinha em todos os lugares em que residira até então. Aquela cozinha, apesar
de simples, era aconchegante o suficiente para ele sentir paz enquanto
permanecia dentro dela. Nela, Heitor passava horas, nas quais refletia, lia ou,
pasmem, cozinhava. Heitor gostava de cozinhar. E, apesar de ali residir sozinho
(e permanecer quase que 90% de todo o tempo de sua existência ali sozinho), ele
preparava os mais variados pratos para si mesmo.
Aquela
ilha não custara mais do que 15 milhões de dólares. Essa bagatela ele conseguiu
arrecadar com a venda de um livro, o único livro que ele escreveu em toda a sua
vida até ali. O livro se chama Shantiti, e conta a história de um homem
socialmente fracassado que passa por uma experiência metafísica, a qual
ressignifica sua existência. Este homem, no livro, escreve um livro sobre tal
experiência, o que o faz ascender socialmente e o torna um homem
multimilionário. Com o dinheiro da venda, ele compra uma pequena ilha no
pacífico e passa nela o resto de sua vida, isolado e triste. Aparentemente, uma
metahistória. Mas, apesar do “o resto de sua vida”, a história parece não ter
fim. Pelo menos é o que afirmam todos os milhões de leitores.
Heitor
já aguarda o desconhecido viajante na ponta do longo mini-porto. Trajava um largo
moletom sem combinação: a calça num tom preto azulado e a blusa inteiramente
branca. Os pés estavam nus sobre o chão.
Lentamente,
a lancha atracou. O único passageiro a bordo logo apareceu e, sem que fosse
preciso se identificar, foi reconhecido por Heitor: era Augusto.
—
Espero não estar atrapalhando você.
—
Você nunca me atrapalha — respondeu Heitor. — Vamos, desça. Acabei de passar um
café.
Os
dois se abraçaram. Um abraço longo e apertado, repleto de ternura. Augusto se
afastou um pouco para conferir melhor o atual estado de Heitor: — Está magro,
hein! Como vamos te chamar de Gordo agora? — E os dois riram. Subiram.
Na
torre, enquanto Heitor cumpre o mando de sua compulsão – busca pôr ordem à sua
familiar bagunça sempre que há visita – Augusto analisa com cuidado os detalhes
daquele estranho lugar: qual a razão daquilo tudo, pensava ele. Que diabos uma
cozinha faz no alto de uma torre? Que diabos uma torre faz numa casa? Que
diabos uma casa faz numa ilha?
—
Mas o que te traz até aqui? — na verdade, Heitor já desconfiava o verdadeiro
motivo; perguntar só fazia parte do drama.
—
Estou estagiando no Jornal Central, me deram uma chance!
—
Puxa, mas isso é demais! Cadê as vadias? Se veio comemorar, eu exijo vadias!
—
Quem me dera! Não tenho a sua sorte, que vive cercado de água. Tô numa seca
tremenda.
—
Chora de barriga cheia — respondeu Heitor batendo-lhe com ternura no rosto —
Olhe pra você: alto, loiro: quem não te quer? E quanto a mim, gordo, feio,
velho...
—
Nem gordo nem velho! Pare de se diminuir. Só quem é visto é lembrado, esse é o
seu único defeito: você sumiu!
Gordo
olhou longe o horizonte e parecia recapitular alguma passagem penosa da sua
vida: — Não, pra mim já deu! Minha cota já foi consumida.
—
Por que é que faz isso consigo mesmo?
—
Bem, não quero voltar a falar sobre isso, você sabe. Vamos esquecer isso, okay?
O
silêncio pontuou sua presença. Verdades tácitas apertavam duramente os
calcanhares dos presentes. Um jogo de cena se fazia despropositado, mas mesmo
na presença do nada que era estar naquela parte do planeta, a verdade ainda se
apresentava tímida e não saia não fosse enroscada em palavras tortas. O que
sempre faltou na relação dos dois foi sinceridade e, sobretudo, cumplicidade.
Heitor decidiu arriscar:
—
Você está aqui por que quer me pedir alguma coisa, estou enganado?
—
Quero que me dê uma entrevista.
Heitor
suspirou como que dizendo um “puta que o pariu”. Por que sempre tinha a
sensação de que o mundo lhe queria tirar alguma coisa?
—
O que é que você não sabe sobre mim? Ou veio aqui só para pedir a minha
autorização pra publicar uma biografia minha?
Novamente
o silêncio se fez presente. Bailava feito bailarina que só baila não mais que
por prazer, alheia aos espectadores, às outras bailarinas.
—
Queria que você voltasse comigo. Já não se puniu o bastante...
—
Não, já disse que não! Ou você é surdo e nunca vai entender isso?
—
Não foi culpa sua, não foi culpa sua...
—
Pára! — gritou Heitor — Já chega! Veio aqui só para me tirar a paz?
Augusto
silenciou-se. Cabeça baixa.
Mais
um ato solo do silêncio.
—
Diga a quem quiser ouvir que não, eu não vou continuar aquela maldita história!
—
Dane-se a história. Ela é só pretexto. Por que você faz isso comigo...?
—
Com você? Acha mesmo que estou querendo te punir? Já acabou pra mim! Eu não
consigo mais viver fora daqui, isso é tudo o que eu tenho, é tudo o que eu sou.
Não quero mais.
Augusto
não conseguiu evitar uma lágrima. E o silêncio mais uma vez se fez notar.
—
Você é mesmo um covarde. Podia ter sido o meu pai, mas tem medo. Por que que
não morre já que tem medo da vida? Não estou aqui por seu dinheiro, nem pra te
matar. Só estou tentando entender, só quero entender. Não estou te cobrando:
não, você não é responsável por meu fracasso, por meu sofrimento. Mas eu acho
que tenho o direito de saber, de entender. O que foi que a minha mãe viu em
você, afinal? Meu pai era muito mais homem, ser humano, apesar de todos os
defeitos.
Falar
do pai, do ex-marido dela era o calcanhar de Aquiles de Heitor (se é que se é
possível imaginar esse disparate mitológico). Nada afetava mais Heitor do que
isso.
—
Escuta... — E respirou fundo, e pensou. E sentiu. — Por favor, vá embora! Vá
embora! Já deu por hoje. — Apoiou-se na beira da pia, cabeça baixa. Augusto
olhou ao redor com desprezo. Se pudesse, implodiria tudo com ambos dentro, mas
não devia (nem podia) fazer isso. Desceu às pressas as escadas batendo todas as
portas. Manobrou sua pequena lancha com ferocidade e rasgou a toda rumo a lugar
qualquer. Do alto da janela da torre, Gordo observava a lancha aproximar-se do
Horizonte. O sonho de Heitor era tocar com as mãos o Horizonte. Visualizava de
longe a realização de seu sonho por seu filho. Sonhava em reencontrar Sofia.
Mas pensou: “Por que mesmo é que ainda não estou morto?”.
Desceu
com todo o cuidado os degraus da escada em espiral que o conduziria até a sala
principal. De dentro da casa ouvia com grande temor a aproximação da tempestade
pelo som dos trovões, cada vez mais perto. Começou a suar e a tremer como nos
velhos tempos: aquele maldito medo de água! Lembrou que estava no meio do
oceano, afinal. Que horror! Como fora parar ali? Ele mesmo se pôs em tal
situação.
A
muito custo, girou a maçaneta da porta e foi ajudado pelo forte vento a
abri-la. A areia da praia já tomava conta do ar, e a úmida da chuva ainda longe
pré-anunciava a chegada expressa da tempestade.
Arrastando
os pés pela areia da praia, vislumbrando pelos olhos entreabertos que se
protegiam do aperitivo tempestade de areia a ressaca do mar incomodada pelo
estorvo da ilha, Heitor alcançou a ponte do Porto. Com o coração a mil, a mente
embaralhada, o estômago revirado; a carne tremula, quase se despregando do osso
tamanha instabilidade motora. A roupa encharcada de suor: um verdadeiro colapso
existencial, Heitor enfim alcança o final da passarela do Porto. Em um
verdadeiro refugo de consciência, se antecipa milionésimamente à chegada
arrasadora da tempestade e se joga no mar. Afunda feito ancora de navio.
Aprendera que, para chegar bem fundo, era importante estar com os pulmões
vazios. Tanto quanto pôde, estava livre de ar. Afinal, de que me serve o ar se
o que se quer é morrer?
Com os olhos
fechados, chegou a certo ponto e cessou a descida. Em posição quase fetal,
quando se endireitou em posição vertical, sentindo a contraditória calmaria do
fundo do oceano em relação à superfície naquele momento, pode então
reexperimentar o sentimento de paz, a mesma paz que instantes antes lhe fora,
mais uma vez, roubada. Naquele estado de plenitude atual, pôde então abrir os
olhos; logo em seguida, expirou. Preencheu-se de água e afundou.Capítulo 1:
Capítulo 2: