quinta-feira, 29 de maio de 2014

Shantiti - Capítulo 3 (Relbier Oliveira)

Heitor pousou suavemente sua xícara sobre o pires buscando fazer o mínimo de barulho possível, de modo que seus ouvidos estivessem suficientemente desimpedidos para definirem o familiar som que captaram vindo de fora. Atento a esse som, Heitor se levanta, curioso, espreita pela pequena janela da cozinha e avista ainda longe do seu pequeno porto uma lancha que se aproxima vagarosamente de sua pequena ilha particular.
De fato, a ilha era bastante pequena. Mas, convenhamos: quantos humanos têm uma ilha para chamarem de sua?
A ilha tinha o formato de um possível ovo recém-quebrado na frigideira, ou talvez o formato de uma ameba em movimento, como queiram. No centro (se é que há um centro em qualquer coisa assim) havia um morro que se elevava uns 10 metros do nível do mar. Ao redor da ilha, não havia nada entre a água e a água de todos os lados que não fosse a própria ilha. Em outras palavras, ela estava localizada precisamente no meio do nada, em lugar nenhum. Sobre o morro, Heitor erguera uma confortável casa, que tinha no último cômodo da torre principal uma singela cozinha. Heitor sempre dera mais importância afetiva ao cômodo da cozinha em todos os lugares em que residira até então. Aquela cozinha, apesar de simples, era aconchegante o suficiente para ele sentir paz enquanto permanecia dentro dela. Nela, Heitor passava horas, nas quais refletia, lia ou, pasmem, cozinhava. Heitor gostava de cozinhar. E, apesar de ali residir sozinho (e permanecer quase que 90% de todo o tempo de sua existência ali sozinho), ele preparava os mais variados pratos para si mesmo.
Aquela ilha não custara mais do que 15 milhões de dólares. Essa bagatela ele conseguiu arrecadar com a venda de um livro, o único livro que ele escreveu em toda a sua vida até ali. O livro se chama Shantiti, e conta a história de um homem socialmente fracassado que passa por uma experiência metafísica, a qual ressignifica sua existência. Este homem, no livro, escreve um livro sobre tal experiência, o que o faz ascender socialmente e o torna um homem multimilionário. Com o dinheiro da venda, ele compra uma pequena ilha no pacífico e passa nela o resto de sua vida, isolado e triste. Aparentemente, uma metahistória. Mas, apesar do “o resto de sua vida”, a história parece não ter fim. Pelo menos é o que afirmam todos os milhões de leitores.
Heitor já aguarda o desconhecido viajante na ponta do longo mini-porto. Trajava um largo moletom sem combinação: a calça num tom preto azulado e a blusa inteiramente branca. Os pés estavam nus sobre o chão.
Lentamente, a lancha atracou. O único passageiro a bordo logo apareceu e, sem que fosse preciso se identificar, foi reconhecido por Heitor: era Augusto.
— Espero não estar atrapalhando você.                          
— Você nunca me atrapalha — respondeu Heitor. — Vamos, desça. Acabei de passar um café.
Os dois se abraçaram. Um abraço longo e apertado, repleto de ternura. Augusto se afastou um pouco para conferir melhor o atual estado de Heitor: — Está magro, hein! Como vamos te chamar de Gordo agora? — E os dois riram. Subiram.
Na torre, enquanto Heitor cumpre o mando de sua compulsão – busca pôr ordem à sua familiar bagunça sempre que há visita – Augusto analisa com cuidado os detalhes daquele estranho lugar: qual a razão daquilo tudo, pensava ele. Que diabos uma cozinha faz no alto de uma torre? Que diabos uma torre faz numa casa? Que diabos uma casa faz numa ilha?
— Mas o que te traz até aqui? — na verdade, Heitor já desconfiava o verdadeiro motivo; perguntar só fazia parte do drama.
— Estou estagiando no Jornal Central, me deram uma chance!
— Puxa, mas isso é demais! Cadê as vadias? Se veio comemorar, eu exijo vadias!
— Quem me dera! Não tenho a sua sorte, que vive cercado de água. Tô numa seca tremenda.
— Chora de barriga cheia — respondeu Heitor batendo-lhe com ternura no rosto — Olhe pra você: alto, loiro: quem não te quer? E quanto a mim, gordo, feio, velho...
— Nem gordo nem velho! Pare de se diminuir. Só quem é visto é lembrado, esse é o seu único defeito: você sumiu!
Gordo olhou longe o horizonte e parecia recapitular alguma passagem penosa da sua vida: — Não, pra mim já deu! Minha cota já foi consumida.
— Por que é que faz isso consigo mesmo?
— Bem, não quero voltar a falar sobre isso, você sabe. Vamos esquecer isso, okay?
O silêncio pontuou sua presença. Verdades tácitas apertavam duramente os calcanhares dos presentes. Um jogo de cena se fazia despropositado, mas mesmo na presença do nada que era estar naquela parte do planeta, a verdade ainda se apresentava tímida e não saia não fosse enroscada em palavras tortas. O que sempre faltou na relação dos dois foi sinceridade e, sobretudo, cumplicidade. Heitor decidiu arriscar:
— Você está aqui por que quer me pedir alguma coisa, estou enganado?
— Quero que me dê uma entrevista.
Heitor suspirou como que dizendo um “puta que o pariu”. Por que sempre tinha a sensação de que o mundo lhe queria tirar alguma coisa?
— O que é que você não sabe sobre mim? Ou veio aqui só para pedir a minha autorização pra publicar uma biografia minha?
Novamente o silêncio se fez presente. Bailava feito bailarina que só baila não mais que por prazer, alheia aos espectadores, às outras bailarinas.
— Queria que você voltasse comigo. Já não se puniu o bastante...
— Não, já disse que não! Ou você é surdo e nunca vai entender isso?
— Não foi culpa sua, não foi culpa sua...
— Pára! — gritou Heitor — Já chega! Veio aqui só para me tirar a paz?
Augusto silenciou-se. Cabeça baixa.
Mais um ato solo do silêncio.
— Diga a quem quiser ouvir que não, eu não vou continuar aquela maldita história!
— Dane-se a história. Ela é só pretexto. Por que você faz isso comigo...?
— Com você? Acha mesmo que estou querendo te punir? Já acabou pra mim! Eu não consigo mais viver fora daqui, isso é tudo o que eu tenho, é tudo o que eu sou. Não quero mais.
Augusto não conseguiu evitar uma lágrima. E o silêncio mais uma vez se fez notar.
— Você é mesmo um covarde. Podia ter sido o meu pai, mas tem medo. Por que que não morre já que tem medo da vida? Não estou aqui por seu dinheiro, nem pra te matar. Só estou tentando entender, só quero entender. Não estou te cobrando: não, você não é responsável por meu fracasso, por meu sofrimento. Mas eu acho que tenho o direito de saber, de entender. O que foi que a minha mãe viu em você, afinal? Meu pai era muito mais homem, ser humano, apesar de todos os defeitos.
Falar do pai, do ex-marido dela era o calcanhar de Aquiles de Heitor (se é que se é possível imaginar esse disparate mitológico). Nada afetava mais Heitor do que isso.
— Escuta... — E respirou fundo, e pensou. E sentiu. — Por favor, vá embora! Vá embora! Já deu por hoje. — Apoiou-se na beira da pia, cabeça baixa. Augusto olhou ao redor com desprezo. Se pudesse, implodiria tudo com ambos dentro, mas não devia (nem podia) fazer isso. Desceu às pressas as escadas batendo todas as portas. Manobrou sua pequena lancha com ferocidade e rasgou a toda rumo a lugar qualquer. Do alto da janela da torre, Gordo observava a lancha aproximar-se do Horizonte. O sonho de Heitor era tocar com as mãos o Horizonte. Visualizava de longe a realização de seu sonho por seu filho. Sonhava em reencontrar Sofia. Mas pensou: “Por que mesmo é que ainda não estou morto?”.
Desceu com todo o cuidado os degraus da escada em espiral que o conduziria até a sala principal. De dentro da casa ouvia com grande temor a aproximação da tempestade pelo som dos trovões, cada vez mais perto. Começou a suar e a tremer como nos velhos tempos: aquele maldito medo de água! Lembrou que estava no meio do oceano, afinal. Que horror! Como fora parar ali? Ele mesmo se pôs em tal situação.
A muito custo, girou a maçaneta da porta e foi ajudado pelo forte vento a abri-la. A areia da praia já tomava conta do ar, e a úmida da chuva ainda longe pré-anunciava a chegada expressa da tempestade.
Arrastando os pés pela areia da praia, vislumbrando pelos olhos entreabertos que se protegiam do aperitivo tempestade de areia a ressaca do mar incomodada pelo estorvo da ilha, Heitor alcançou a ponte do Porto. Com o coração a mil, a mente embaralhada, o estômago revirado; a carne tremula, quase se despregando do osso tamanha instabilidade motora. A roupa encharcada de suor: um verdadeiro colapso existencial, Heitor enfim alcança o final da passarela do Porto. Em um verdadeiro refugo de consciência, se antecipa milionésimamente à chegada arrasadora da tempestade e se joga no mar. Afunda feito ancora de navio. Aprendera que, para chegar bem fundo, era importante estar com os pulmões vazios. Tanto quanto pôde, estava livre de ar. Afinal, de que me serve o ar se o que se quer é morrer?
Com os olhos fechados, chegou a certo ponto e cessou a descida. Em posição quase fetal, quando se endireitou em posição vertical, sentindo a contraditória calmaria do fundo do oceano em relação à superfície naquele momento, pode então reexperimentar o sentimento de paz, a mesma paz que instantes antes lhe fora, mais uma vez, roubada. Naquele estado de plenitude atual, pôde então abrir os olhos; logo em seguida, expirou. Preencheu-se de água e afundou.

Capítulo 1: 
Capítulo 2: