sábado, 11 de janeiro de 2014

Por um mundo de Amizade e Esperança - Relbier Oliveira




Ele foi inocente, e ofereceu a uma linda garota todo o mais belo e puro sentimento que há longa data vinha acumulando dentro de si. Ofereceu a ela sem esperar nada em troca. Confiou e se entregou. Saltou de olhos fechados em direção ao desconhecido, orientado apenas por castelos de nuvens e sonhos de pura esperança e fantasia: um verdadeiro conto de fadas. Se permitiu nele viver, no que talvez tenha sido, até aquele momento, sua maior experiência de um delírio. Porém, o choque com a realidade foi brutal, foi feroz. A mais terrível experiência de esfacelamento de uma fantasia que teve até então. A sensação foi de tal modo terrível e desconhecida que ele até pensou em se matar. Não apenas pela desilusão amorosa em si, mas pelo o que essa experiência logrou lhe mostrar sobre a vida: um mundo realmente cru, preto e branco; sem magia, sem qualquer sentido inerente e necessário. Ele perdeu o chão e viu o quanto o seu bem-estar era efêmero e sem garantia alguma. O quanto se prende a praticamente nada e, apesar disso, fundamenta e estrutura todas as suas significações. A necessidade de uma ilusão que amarrasse, mesmo que frouxamente, as coisas do mundo gritou com o mesmo timbre de voz que a morte: era tudo ou nada. Antes de enlouquecer ou de surtar, ele se mataria! Mas, não! Ele não queria morrer! Ele não suportava pensar a sua não-existência. “Mentiras sinceras me interessam”, ele acreditava nisso. Queria gozar o mundo até a última gota de prazer. Mas tinha agora uma tarefa homérica: voltar para casa, reorganizar o seu mundo, e alertar a todos os seus conterrâneos sobre o perigo real do canto das sereias e dos monstros que habitam a esquina do mundo, a esquina do sentido.
Não cabe culpar ninguém. Dizer do que foi feito e do que não foi feito ou foi feito de modo errado: isso não levaria a lugar algum. A tarefa agora era continuar em frente, amparado apenas pelo único elemento que se manteve intacto; o mais efêmero e vago. Contudo, ainda assim, o exato fio de cabelo que sustenta a espada sobre a cabeça do soberano: a esperança.
Qual a natureza da fé? Ele não sabe. Qual o sentido da vida? Tampouco. Mas ele tem esperança. E mais do que nunca percebe o quanto ela o sustenta e o define.
“Vamos nos preocupar primeiro com a hemorragia. Infecção, se vier a ter, depois a gente trata”. Se o Amor se tornou duvidoso, que o mundo saiba que ele ainda acredita na Amizade. Que mundo?! Ora, isso é problema seu! ;-)

sábado, 7 de setembro de 2013

Moonlight Sonata




Tudo pronto para a cirurgia. O cirurgião aguardava apenas a chegada do anestesista, para apagar a vitima. Viajava em devaneios encarando despercebido o moribundo, quando foi desperto, surpreso, com o que este lhe disse:
— Promete que, assim que eu morrer, você desce até a cantina, fuma um acompanhado de um café, enquanto assobia ou cantarola uma canção qualquer?
O cirurgião, que tentou fazer média do tipo concentrado, disse-lhe apenas que não fumava e que vinha evitando o café. Mas pensou consigo: “morrer?! Eu nunca perdi um paciente”, com o que, por extensão do raciocínio, chegou a que “nunca perdi um paciente... Se um dia isso vier a acontecer, como será que vou me sentir?”.
— Quero dizer — continuou o desgraçado enfermo — a vida não é nem boa nem má. Mesmo que eu queira muito viver, se eu morrer, levo comigo que você terá feito o seu melhor. E se eu morrer, ainda que você não tenha feito o seu melhor, ainda que você não esteja em um bom dia... Quero dizer, a vida não é nem boa nem má, as coisas acontecem. As coisas apenas acontecem.
O cirurgião não sabia o que pensar. Aquele paciente era algum tipo de doido? Sentiu certo desconforto com aquela conversa de morte.
— Pra que time você torce, corintiano? — Tentou desconversar.
— Na verdade, eu sou baiano. Mas como muita gente lá, eu torço pro Flamengo.
— Escuta: o Corinthians já tem a maior torcida, não tem não?
— Que nada! Isso é pretexto da mídia. O Corinthians é um fenômeno fabricado.
“Fenômeno fabricado?!”, pensou novamente surpreso o cirurgião. E, involuntariamente, tornou a pensar sobre o assunto de morte.
— Mas isso que é belo — continuou o ferido — eu não vou bater de frente pra mudar o mundo. Gosto de tomar uma bela taça de vinho tinto ao som de uma suave música clássica: Aria Sulla, Sonata ao Luar, enquanto apenas percebo o mundo...
— Nona Sinfonia...
— Vivaldi eu acho meio estranho, mas até ouço às vezes. Você consegue pensar em alguma música agora?
O médico não quis ter razão, não quis discutir. Deixou-se levar pelos desejos da vitima. Às vezes, seriam mesmo os seus últimos desejos. Não levaria mais do que cinco minutos até que o anestesista adentrasse a sala.
— Eu gosto daquele filme, Eu Sou a Lenda...
— Redemption Song. Boa pedida! — E começou a assobia-la.
— Por que parece que as pessoas gostam de pensar na tragédia humana, né? — Questionou reflexivo o Doutor.
— Se acontecer — Respondeu o infeliz — Tenta tirar o valor, a moral do fato. As coisas não são nem boas nem más, as coisas são. O mundo acontece. Nosso olhar é enviesado.
“Enviesado?!”, surpreendeu-se novamente o médico. E não se conteve a questionar:
— O que você faz?
— O que eu faço?! Há algum tempo, essencialmente, uma única coisa: observo a vida. Tento experienciar cada detalhe como se fosse um bom vinho...
— Não, você não entendeu. Quero saber qual sua profissão.
— Minha função, você quer dizer?
— Sim, pode ser.
— Já parou pra pensar no sentido em que esta palavra é usada?
— Você é filósofo? Psicólogo? Escritor...
— Sofista — respondeu o quase-morto — Se existisse essa função, gostaria de ser sofista. Outro dia eu tive um sonho — prosseguiu ele — Sonhei que Deus me dizia: “dê a cada um o que é seu, independente se pareça justo ou não”. Sócrates... Adoro esse cara. Conheci um homem certa vez que fez todo um trabalho monumental pra demonstrar que Sócrates na verdade era um sofista, apesar de ter passado a vida inteira tentando negar isso. O que você nega que é? Por que você nega o que é? Talvez a graça esteja nisso. Não precisa ter valor. O olho humano estraga o mundo; o corrompe, o tortura; quer conformá-lo ao seu desejo...
— Só um momentinho... — disse-lhe o cirurgião indo até a porta sondar a localização do anestesista. Aquela conversa estava muito doida e ele queria acabar logo com ela. Eis que chegou o anestesista.
— Bem, acho que agora podemos começar. — disse o médico. Augusto, deitado, virou-se para o anestesista e perguntou:
— Você fuma? — O anestesista fez expressão de quem admite um erro, e concluiu:
— É uma droga! Estou tentando parar, mas às vezes penso: que se foda! — e riu. Todos riram.
— Que bom! — disse o enfermo.
— E você?
— Sou alérgico a fumaça.
— Quer dizer alguma ultima coisa antes que eu lhe apague? — Brincou o anestesista. Augusto pensou calmamente por um instante. Depois disse:
— Que bom! Estou satisfeito. — Sorriu um sorriso discreto. A anestesia lhe foi dada.
Oito horas e quarenta e cinco minutos depois. A porta da cantina se abre. Vestindo uma roupa social um pouco amarrotada, Heitor entra carregando sua maleta de médico após mais um dia extenuante de serviço. Senta-se junto ao balcão.
— O mesmo chá? — Pergunta o atendente. Passando as mãos pelo rosto, perplexo, reflexivo, Heitor responde:
— Você não teria algum vinho?
— Desculpe, senhor, não vendemos bebidas alcóolicas.
— Então me vê um café.
— Voltou? — Heitor apenas fez que sim com a cabeça.
O café veio. O atendente ia saindo...
— Escuta, você teria um cigarro?
— Graças a Deus, não fumo.
— Só mais uma coisa — pediu Heitor. Tendo conseguido a atenção do atendente, meneou a cabeça para si mesmo como quem custa a acreditar em algo, e, por fim, disse:
— Conhece alguma música clássica? Bach... Beethoven?
— O senhor está bem? — Questionou, preocupado.
— Aria Sulla...?!
 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Shantiti - Capítulo 2 (Relbier Oliveira)



— Escuta, eu não entendo... Quem é essa garota que você tem trancada ai...? Por que você a mantém trancada...? O que foi que ela fez?
— Gordo, quão rápido você consegue correr? É que estou muito a fim de matar alguém hoje. 20 minutos são suficientes?
Gordo, que era realmente gordo, olhou pela plataforma da torre a vasta floresta que se estendia para além do que os olhos e o horizonte permitiam ver, e disse calmamente, enquanto levava para trás da orelha uma mecha de cabelo que pendia-lhe na testa:
— Eu não vou correr, você sabe disso. Não banque o gângster, por favor... Não lhe cai bem. Já estou farto disso tudo... Vou sair.
— Ora, vejam só! Mas você não conseguiu o que queria?
— Sim! Mas isso tudo é na verdade um pesadelo. Eu sempre saio me sentindo um lixo, como se me faltasse algo. Como você faz isso? O que é que você está roubando de mim?
— Além do dinheiro? Mais nada. Toda vez você diz a mesma coisa, isso já tá ficando chato.
— E você, que toda vez diz que vai me matar e nunca me mata? — Retrucou Gordo, já exaltado, batendo com os dois punhos na mesa, atrás da qual uma luxuosa cadeira de balanço – feita de madeira, com estofado rosa e adornada com diversos metais e pedras preciosas – balançava sem aparentemente ter ninguém sobre ela.
— Não está me vendo outra vez, Gordo? – E emitiu um sonoro riso de deboche.
— O que é você, um demônio?
— E você, Gordo, o que é? Um demônio?
Gordo deu-lhe as costas impaciente e se dirigiu até o parapeito da plataforma, pendurou-se pelo lado de fora e começou a descer pela longa escada vertical pregada na parede. O vento e as nuvens no céu anunciavam a tempestade habitual dos fins de tarde.
— Vai chover ­— Disse-lhe lá de dentro a voz — É melhor levar um guarda-chuva, acho que você não vai querer se molhar.
Sem mais dar atenção ao que a voz lhe dizia, continuou descendo até alcançar o chão. Lá, novamente ajeitou a mecha de cabelo. Olhou uma ultima vez para o alto da torre e para a ameaça real e quase certa de chuva; respirou fundo, segurando o ar por alguns instantes e enquanto mantinha os olhos, como que numa prece. Em seguida, desapareceu na mata fechada. A chuva começou a cair.
“Curiosa essa sensação. Por que, afinal, passei tanto tempo com medo da chuva?”. Sentiu-se tonto. Apoiou-se numa árvore próxima. Começou a tremer. Caiu numa poça de lama no chão. — Não! Por favor, Deus! Não! — Gritou. E começou a se arrastar, ofegante. Seu coração doía apertado e batia acelerado. O estômago embrulhado e uma sensação de frio e aperto no alto do abdômen. Mas continuou, mesmo se arrastando. — Não, Deus! Não! — Gritava. O desespero. A sensação de morte iminente. Ele iria mesmo morrer, era só questão de tempo. O estava matando. Ele estava de fato morrendo.
“Vai morrer! Vai morrer! Vai morrer!”
De repente, pensou ter ouvido uma voz feminina dizer “Não!”. A chuva então parou. Conseguiu ainda levantar a cabeça, já esgotado, mas por fim deixou-se chafurdar, sem nenhuma energia mais.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Shantiti - Capítulo 1 (Relbier Oliveira)



Shantiti era já uma mulher formada, mas se vestia como a uma criança. De baixa estatura, talvez um metro e meio ou mais.
— Mas... Quantos anos você tem, menina?
—Tantos quantos você queira.
E disse ainda ao homem, para o qual entregou o pequeno envelope vermelho:
— Não abra, eu já sei quem é a vitima. No caminho pra cá, não resisti e li. A vitima sou eu.
O homem riu sadicamente. Primeiro, pensou mesmo que ela pudesse ter lido, mas terminou por considerar que não, já que ninguém seria louco o suficiente para entregar ao seu algoz a ordem de sua própria execução.
Ao abrir o envelope vermelho, do alto de sua arrogância intelectual, explodiu com ele em mais de mil pedaços. A pequena Shantiti, que ainda estava suficientemente próxima, não escapou de ser arremessada longe na sala escura do amplo apartamento. Caiu próxima às janelas, que se arrebentaram com a força da explosão, permitindo que a luz do dia ensolarado lá fora invadisse o ambiente interno como que numa inundação. Coberta pelo sangue da outra vitima, Shantiti, com dificuldade e atordoada, pôs-se de pé. Testou os movimentos da mão direita, como que admirada. Ajustou as duas xuxas dos cabelos e por fim olhou em volta, contemplando a estranha e caótica cena de destruição. Voltando-se para a janela, apoiou a mão direita num pontiagudo estilhaço ainda preso, perfurando-a num corte largo. Emitiu um grito pavoroso, que aparentemente a fez despertar. Neste instante, alguns vizinhos do apartamento arrombaram a porta a fim de socorrer possíveis feridos. Foi quando Shantiti lançou-se do alto do sétimo andar, estatelando-se no chão da ampla calçada lá embaixo ante os pés dos curiosos de plantão.
Shantiti gostava de dias claros, sem nuvens nem chuva, sem frio. Nas noites ou nas trevas, ela mergulhava em pesadelos sedutores, nos quais os gozos mais sofríveis, porém mais sinceros, eram “realizados”. Na luz, Shantiti era uma pessoa deprimida, mas satisfeita e confortável por dentro. Mas Shantiti não podia controlar o ciclo claro-escuro, por mais que tentasse. E ela nunca desistiu de tentar. Nunca.