Em meu coração amor a nascer estava,
Mas pisado novamente foi.
Sobre a terra sal joguei
na esperança de em que nela
nunca mais tal flor-roxa voltasse a nascer:
meu coração agora é preto.
25/03/2015
Um blog para todos e todas publicarem suas poesias, artigos, historias e contos esquecidos em gavetas e entregues às traças. Aqui eles serão lidos e cumprirão enfim sua finalidade. Além disso, postaremos adaptações de livros para o cinema, as quais serão disponibilizadas para download. Para você postar nesse blog basta fazer um comentário na última postagem deixando seu email.
quarta-feira, 25 de março de 2015
domingo, 15 de março de 2015
quarta-feira, 11 de março de 2015
Vide a mim - Fernando Xavier
Tempo de recolher pedras.
Tempo de plantar e de observar o horizonte dos campos
Nas campinas nascerão flores amarelas e nada mais.
Das odes surgirão as últimas lamúrias de um tempo que
foi e já não arrebentarão as ondas em pedras artificiais.
Tempo de perder e de calar.
Tempo de bailar no momento mesmo da sensação de liberdade,
porque deveras é sensação e não condição.
Dos redutos de finitudes gritarão aos céus aqueles
que não suportam a potência em si.
Não se curvarão à ignominias os clarões instáveis
em meio á escuridão total.
È tempo! È. Porque não há de ser de outro modo,
Quem fugirá à sedução de invenções humanas?
Quem seguirá sua desordem e lamentará o tempo ser objeto
para uns.
È tempo de promiscuir-se. De servir aos que venceram, de
abaixar a fronte olhando para o tendão de aquiles daquele que
ousa acreditar em sua ação.
Tempo de vedar os olhos e escolher uma viação, um destino, uma
faca para amolar.
Tempo de acreditar que a morte é processo e não abstenção de viver.
È espaço de andorinhas, de pardais, de pássaros que deveriam estar ali,
mas não estão. Pois esta é a terra dos homens.
Essa é a terra das instituições.
Vide a mim. E atente para meus olhos, minha curvatura ergométrica, a ossatura da minha alma, olhe para as fracas expressões da minha face. O que vês?
Tempo de plantar e de observar o horizonte dos campos
Nas campinas nascerão flores amarelas e nada mais.
Das odes surgirão as últimas lamúrias de um tempo que
foi e já não arrebentarão as ondas em pedras artificiais.
Tempo de perder e de calar.
Tempo de bailar no momento mesmo da sensação de liberdade,
porque deveras é sensação e não condição.
Dos redutos de finitudes gritarão aos céus aqueles
que não suportam a potência em si.
Não se curvarão à ignominias os clarões instáveis
em meio á escuridão total.
È tempo! È. Porque não há de ser de outro modo,
Quem fugirá à sedução de invenções humanas?
Quem seguirá sua desordem e lamentará o tempo ser objeto
para uns.
È tempo de promiscuir-se. De servir aos que venceram, de
abaixar a fronte olhando para o tendão de aquiles daquele que
ousa acreditar em sua ação.
Tempo de vedar os olhos e escolher uma viação, um destino, uma
faca para amolar.
Tempo de acreditar que a morte é processo e não abstenção de viver.
È espaço de andorinhas, de pardais, de pássaros que deveriam estar ali,
mas não estão. Pois esta é a terra dos homens.
Essa é a terra das instituições.
Vide a mim. E atente para meus olhos, minha curvatura ergométrica, a ossatura da minha alma, olhe para as fracas expressões da minha face. O que vês?
domingo, 11 de janeiro de 2015
Bonecos de Dedo - (Relbier Oliveira)
Não haverá palavra dita por nenhum outro que lhe trará paz.
Não haverá um só símbolo que transmitirá confiança;
que lhe trará certeza do que sente ou do que pensa.
Não haverá sequer um nada que lhe garanta o que vier do outro.
Este será para sempre uma perene possibilidade e incógnita.
O único ponto fixo neste universo deverá ser eu.
Eu. Que fui enganado por não sei o que.
Eu. Que me permiti crer que o amor fosse um sentimento interpessoal, bilateral,
um laço de necessária reciprocidade entre dois iguais.
Um desvio no percurso que faria confundir e confluir o fluxo da vida.
Que dois poderiam ser o mesmo ao ser outro por este meio.
Me enganei. Me iludi, me machuquei.
Mas o que consegui ao perceber o erro não foi me sentir melhor.
Se antes havia esperança, hoje somente há solidão.
Perceber-se blindado.
Perceber ao outro até possivelmente inexistente, ou indiferente.
Descobrir que a vida pode ter sido uma piada mal contada e sem graça
e ver que este teatro na verdade é um monólogo interpretado por bonecos de dedo.
O que se ganha com a luz de fora da caverna
se os sentidos apenas se faziam possíveis na dança das sombras?
A Cura, Quem-me-lê, será afundar-se na doença?
Não sei.
Não haverá um só símbolo que transmitirá confiança;
que lhe trará certeza do que sente ou do que pensa.
Não haverá sequer um nada que lhe garanta o que vier do outro.
Este será para sempre uma perene possibilidade e incógnita.
O único ponto fixo neste universo deverá ser eu.
Eu. Que fui enganado por não sei o que.
Eu. Que me permiti crer que o amor fosse um sentimento interpessoal, bilateral,
um laço de necessária reciprocidade entre dois iguais.
Um desvio no percurso que faria confundir e confluir o fluxo da vida.
Que dois poderiam ser o mesmo ao ser outro por este meio.
Me enganei. Me iludi, me machuquei.
Mas o que consegui ao perceber o erro não foi me sentir melhor.
Se antes havia esperança, hoje somente há solidão.
Perceber-se blindado.
Perceber ao outro até possivelmente inexistente, ou indiferente.
Descobrir que a vida pode ter sido uma piada mal contada e sem graça
e ver que este teatro na verdade é um monólogo interpretado por bonecos de dedo.
O que se ganha com a luz de fora da caverna
se os sentidos apenas se faziam possíveis na dança das sombras?
A Cura, Quem-me-lê, será afundar-se na doença?
Não sei.
sábado, 27 de dezembro de 2014
Shantiti - Capítulo 6 (Relbier Oliveira)
Saimon
saiu de detrás da torre que sustentava a casa e se surpreendeu ao ver o corpo
estirado no chão, embebido em sangue. Desvirou-o com a sola do pé. Pisou-lhe o
abdômen, apreciando sua face, enquanto ele mesmo fazia cara de nojo para o que
via. Olhou, então, para o céu, como que questionando aos céus o ocorrido. Depois,
pôs-se a puxar o cadáver por uma das pernas até a beira da floresta, onde uma
cova já aberta aguardava o defunto. Parou-o lateralmente a ela e, com os pés, o
fez rolar para dentro: caiu com o rosto virado para baixo. Pôs-se então a
cobri-lo com a terra amontoada ao lado. Acabado o serviço, esfregou as mãos
sujas de terra nas bases da calça branca. Tomou de volta o paletó branco que pendurara
num galho e o vestiu. Por fim, com certa dificuldade, pegou uma grande lápide retangular
de mármore e pôs sobre o túmulo. Nela, havia apenas a inscrição “VOCÊ”, em
letras garrafais. Bateu as mãos, como que simbolizando a missão cumprida.
Admirou por um instante ou dois a chegada de mais uma chuva que se anunciava, em
tempo suficiente para procurar nos bolsos algum ultimo cigarro e acendê-lo. Em passos
brandos, entrou pela única porta da torre.
Subindo
pela escada curva, parou no topo ao escutar um gemido. Achou estranho, pois
cria-se sozinho ali. Munido apenas da reminiscência do som, buscou localizar
sua origem, mantendo os ouvidos em riste, feito cão; a postos, caso outro som
fosse emitido. Percebeu que, apesar de sempre estar por ali, muito pouco
conhecia do lugar. Corredores e mais corredores. Salas e mais salas. Diversos quartos.
Tudo mobiliado e, apesar do seu desdém, muito bem decorado: Saimon gostava
muito daquele lugar, passava a maior parte do seu tempo ali. Se você o quisesse
encontrar, o lugar mais provável – ou o primeiro lugar a se procurar –
certamente deveria ser ali.
Por
sorte, a origem do som fez o favor de emitir outro gemido, exatamente quando
Saimon passava ao lado da porta onde provavelmente aquela coisa estaria.
Primeiro,
colou o ouvido na porta, a fim de sondar melhor o que poderia haver lá dentro. Depois,
torceu a maçaneta, então pôde perceber que a porta estava trancada. Olhou para
os lados enquanto pensava numa solução para este obstáculo. Já sem paciência,
optou por valer-se do que tinha “em mãos” naquele momento: meteu o pé
violentamente na porta, arrombando-a, o que causou um ruído fortíssimo que
ecoou por todos os cantos da casa e fez na floresta as aves esvoaçarem.
Com
a “pezada”, a porta se abriu e, ao bater na parede, voltou e se fechou outra
vez. Entretanto, já não estava mais trancada (ou, pelo menos, não mais se podia
trancar sem fechadura).
Do
vislumbre que o primeiro chute propiciou, Saimon guardava na memória uma cama,
estantes de livros por todas as paredes e uma enorme janela com grades, que
permitia a entrada da luz em abundância. Aparentemente, não havia ninguém lá
dentro. Mas o som, sem engano, havia vindo de lá. Foi então que, enfim, decidiu
entrar.
Prestes
a tocar a maçaneta outra vez, sentiu-a ser forçada também pelo outro lado. Com a
força do susto, e em sobressalto, pulou pra trás. Nesse instante, a porta se
abriu vagarosamente, até tocar e parar na parede. Uma figura inteiramente
coberta por um espesso pano preto surgiu vindo da lateral do quarto. Apenas seus
olhos eram possíveis ver. Tinha por volta de um metro e meio e, pelo olhar,
aparentava estar assustada.
─
Que... Que porra é você? – Perguntou Saimon, já apavorado. A pequena criatura
deu alguns passos, até alcançar o corredor. Analisou os dois caminhos possíveis
e, com voz de mulher, disse apenas “Entre!”.
As
pernas de Saimon, instintivamente, tencionaram a tira-lo dali num pinote nunca
antes visto, mas sentiu em seu coração que já não vira poucas coisas nessa sua
existência, e que o medo, em toda e a cada próxima vez, quase sempre esteve e
haveria de estar presente: fugir para onde? Fugir de que? Já não havia mais
segurança em existir.
─
E por que eu faria isso? – Questionou.
─
Porque é o que quer fazer. Se veio até mim é porque quer algo de mim.
─
Eu vim porque sou curioso, só por isso.
─
Então não quer entrar?
─
Não disse que não quero. Só disse que não foi pra isso que vim aqui. Mas acho
que não quero não.
─ Como
posso agradecer por ter me libertado?
─
Você estava presa? Acha! Não me deve nada. Mas, por que estava presa? Foi o
vento quem te trancou?
─
Foi o Homem.
─
Que homem?
─
O Humano.
─
O homem humano? Todos os homens são humanos... (bem, eu acho).
Sem
mais conversa, a estranha criatura correu feito queniano e sumiu rapidamente da
vista de Saimon, que nem pensou em tentar detê-la ou acompanha-la.
Já recomposto do susto inicial, e sem entender
nada do que acabara de acontecer, sentou-se no chão, exausto. Voltou então a
olhar para dentro do quarto, que, para sua surpresa, não havia mais nada dentro,
nem mesmo janela.
─
Mas, que porra é essa! – Exclamou. Pôs-se novamente de pé e decidiu-se por
explorar o estranho quarto. Primeiro a cabeça; até que tomou coragem e entrou
por inteiro. Realmente, não havia mais nada lá. Mas... Espere: num dos cantos
havia uma pequena luz, como uma fresta, exatamente na quina da parede. Novamente,
a curiosidade o moveu, e ele caminhou até lá. Agachou-se para olhar através dela.
Foi então que a voz da estranha criatura novamente se fez presente. Da porta, disse:
“eu disse que você queria entrar. Eu disse que queria algo de mim”. Assustado,
Saimon apenas pode vê-la fechar a porta. A escuridão se fez densa: até a consciência
de Saimon nela desapareceu.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
Shantiti - Capítulo 5 (Relbier Oliveira)
─ Meu nome é
Saimon. Deveria ser escrito com “i”, mas minha mãe é latina. Não vou contar
minha história, essas coisas são muito chatas.
Uma vez, eu meditava
sobre minha moto através de uma estrada de terra por dentro de uma mata
fechada. Só queria um lugar pra fumar e pensar mais sobre a vida. Do nada,
travei as duas rodas, frenei alguns metros até parar, enfim, envolto duma nuvem
rala de poeira que me alcançara. Eu devia estar em transe, mas não estava. Pensei
comigo mesmo “porque diabos fiz isso?”.
─ Foi quando
encontrou a caverna?
─ Porra, Heitor!
Guenta ai que eu já chego lá. Acho que eu estava com sede.
─ Não era aquele
rio sujo que ladeava a estrada...?
─ Eu não disse
que pretendia beber a água daquele rio, só disse que achava estar com sede.
─ Por que raios
você correu feito um louco pra dentro da mata?
─ Cara, me deixa
contar a história?
─ Por que disse
que se chamava Saimon? Com quem está falando, afinal?
─ Ah! Cara!
Foda-se! Esquece essa história.
Heitor
se levantou da luxuosa poltrona do centro da biblioteca, caminhou até a estante
de livros e retirou um volume grosso de capa preta. Analisou-a por alguns
instantes antes de abri-lo. Surpreendeu-se ao ver que todas as páginas estavam
em branco.
─ Por que é que
imagino que todos os outros livros também estarão em branco?
─ Heitor,
Heitor, Heitor. Sua lógica é curiosa.
Heitor
se dirigiu então até a ampla mesa do escritório, reparou os objetos nela
disposta. Sentou-se na cadeira, balançou-se por algum instante, pensativo. Tomou
na mão a caneta-pincel. Achou curiosa essa coisa tão antiga. Molhou-lhe a ponta
na tinta, se certificando de que funcionaria: fez um x no próprio braço. Separou
para si um papel branco que jazia sobre um montante sobre a mesa e principiou a
rabisca-lo. De um sobressalto, pôs-se de pé, lançando a cadeira para trás: ─
Mas que diabos é isso! ─ exclamou, exaltado. A caneta não marcara o papel. ─ Eu
não... Eu não...
─ Você está
pálido, Heitor.
─ Como saio
daqui?
─ Da mesma forma
como entrou. Mas já quer ir embora?
Heitor
se mostrava confuso. Seu andar era vago, sua mente parecia descrer em tudo.
─ Posso caminhar
por ai?
─ Heitor, isso
aqui não é uma prisão...
─ Mas é a sua
casa!
─ Você acha que
eu moro aqui? Sério mesmo que você acha que eu moro aqui? Não, Heitor, eu
apenas estou aqui. Sei lá se alguém mora aqui. Eu não teria tão péssimo gosto
para decoração.
Heitor
deu-lhe as costas, consternado. Saiu pelo amplo portal de madeira da
biblioteca. Notou estar em uma espécie de casarão, ou mansão. Um palacete. O teto
era extremamente alto. Os móveis eram rústico, em sua grande maioria de
madeira, mas muito bem trabalhados. Carpetes e tapetes. Amplos vitrais que
permitiam a luz do dia adentrar e tornar o ambiente mui claro.
Heitor
desceu as escadas de mármore branco: escada curva, que o levou ao que deveria
ser a sala de estar. Aquele lugar parecia estar vazio, apenas ele e Saimon
presentes.
Achou
a cozinha. Caminhou em direção a pia, tinha sede. Mas a cada passo que dava em
direção a ela, algo na janela parecia o deixar cada vez mais estarrecido. Ao se
aproximar, parecia não crer no que via: um mar de selva. A casa estava de tal
forma alta, que a vista lhe permitia ver a copa de todas as árvores. Apressou-se
então em sair à pequena varanda que havia contígua à cozinha. Apoiando-se no
parapeito, ficou surpreso ao ver a altura que o separava do chão. "Para
onde daria a porta de saída?”, pensou consigo. Correu em direção a ela. Estaria
trancada? Girou a maçaneta. Abriu.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Shantiti - Capítulo 4 (Relbier Oliveira)
─ A única mulher
que amei de verdade me traiu. Nunca me amou. Apenas me usou para tentar
esquecer aquele que ela julgava ser o grande amor da sua vida desde os tempos
da mais tenra adolescência. Me deixou um filho desse cara quando resolveu amar
de verdade uma outra pessoa. [Riu-se. Um riso como que de descrédito]. Acho que
ninguém jamais vai entender. – E se calou. Ficara em silêncio por longo
instante. ─ Posso fumar aqui?
─ Aqui você pode
fazer o que bem quiser, já disse. Sinta-se a vontade.
─ E hoje, aquela
criança é a única coisa com que me importo. Mas me sinto culpado... O que fui
na vida dela, um erro? Apenas isso: um erro? Eu não queria que ela tivesse
morrido... [A voz embargou, o choro subia-lhe à garganta. Respirou fundo
olhando o teto]. Ela fugia de mim feito o diabo da cruz! Me faz odiar quem sou.
Daria a minha vida para que ainda estivesse viva. Qual a lógica desse mundo?
─ Culpa? Sente
culpa, Heitor? Qual foi seu pecado?
─ Existir.
Encontrar ela, ser o azar da vida dela. Tê-la atrapalhado o tanto que
atrapalhei. Talvez ela ainda estivesse viva.
─ Deve ser
infernal pensar assim. Você não se diverte?
─ Como assim?
─ Sabe, sua vida
me parece um lixo! Eu também iria querer morrer. A existência deve ser muito
barata mesmo: que desperdício!
─ Está me
julgando?
─ Estou pensando
em voz alta. Não sou seu terapeuta e nem Deus pra resolver o seu problema. Se espera
isso de mim é melhor ir embora. Se tenho algo a te oferecer, saiba: é contra a
minha vontade, minha existência já é um fardo considerável.
─ Me
divertir...? Como assim?
─ Sabe... A vida
é uma bosta ou está uma bosta?
─ Por que é que
pressinto a chegada de um xeque-mate nessa sua fala...?
─ Deve ser o seu
sentido paranoico.
─ Saimon, uma
vez você me disse “o outro está que se dane pra você! O único outro que deve se
importar com a sua vida é aquele que você projeta de si; aquele que te adula ou
te destrói”.
─ Se disse, já
não é meu. Aonde você quer chegar?
─ Você não se
sente sozinho?
[Outro silêncio
imperou]
─ Veja, Heitor:
e se Twain estiver certo? E se a existência for só um pensamento? E se, e se, e
se? E se?
─ E outra vez
também me disse “ajo como a água que escorre da montanha: desvio dos obstáculos
buscando o melhor caminho; se não consigo contornar, transbordo, mas não paro,
porque parar é morte! E sou vida!”. Sabe Saimon, queria ser como você, queria
ser vida...
─ Queria?
─ É. Queria. Mas,
escolhemos o que desejar? Escolhemos o querer?
quinta-feira, 29 de maio de 2014
Shantiti - Capítulo 3 (Relbier Oliveira)
Heitor
pousou suavemente sua xícara sobre o pires buscando fazer o mínimo de barulho
possível, de modo que seus ouvidos estivessem suficientemente desimpedidos para
definirem o familiar som que captaram vindo de fora. Atento a esse som, Heitor
se levanta, curioso, espreita pela pequena janela da cozinha e avista ainda
longe do seu pequeno porto uma lancha que se aproxima vagarosamente de sua
pequena ilha particular.
De
fato, a ilha era bastante pequena. Mas, convenhamos: quantos humanos têm uma
ilha para chamarem de sua?
A
ilha tinha o formato de um possível ovo recém-quebrado na frigideira, ou talvez
o formato de uma ameba em movimento, como queiram. No centro (se é que há um
centro em qualquer coisa assim) havia um morro que se elevava uns 10 metros do
nível do mar. Ao redor da ilha, não havia nada entre a água e a água de todos
os lados que não fosse a própria ilha. Em outras palavras, ela estava
localizada precisamente no meio do nada, em lugar nenhum. Sobre o morro, Heitor
erguera uma confortável casa, que tinha no último cômodo da torre principal uma
singela cozinha. Heitor sempre dera mais importância afetiva ao cômodo da
cozinha em todos os lugares em que residira até então. Aquela cozinha, apesar
de simples, era aconchegante o suficiente para ele sentir paz enquanto
permanecia dentro dela. Nela, Heitor passava horas, nas quais refletia, lia ou,
pasmem, cozinhava. Heitor gostava de cozinhar. E, apesar de ali residir sozinho
(e permanecer quase que 90% de todo o tempo de sua existência ali sozinho), ele
preparava os mais variados pratos para si mesmo.
Aquela
ilha não custara mais do que 15 milhões de dólares. Essa bagatela ele conseguiu
arrecadar com a venda de um livro, o único livro que ele escreveu em toda a sua
vida até ali. O livro se chama Shantiti, e conta a história de um homem
socialmente fracassado que passa por uma experiência metafísica, a qual
ressignifica sua existência. Este homem, no livro, escreve um livro sobre tal
experiência, o que o faz ascender socialmente e o torna um homem
multimilionário. Com o dinheiro da venda, ele compra uma pequena ilha no
pacífico e passa nela o resto de sua vida, isolado e triste. Aparentemente, uma
metahistória. Mas, apesar do “o resto de sua vida”, a história parece não ter
fim. Pelo menos é o que afirmam todos os milhões de leitores.
Heitor
já aguarda o desconhecido viajante na ponta do longo mini-porto. Trajava um largo
moletom sem combinação: a calça num tom preto azulado e a blusa inteiramente
branca. Os pés estavam nus sobre o chão.
Lentamente,
a lancha atracou. O único passageiro a bordo logo apareceu e, sem que fosse
preciso se identificar, foi reconhecido por Heitor: era Augusto.
—
Espero não estar atrapalhando você.
—
Você nunca me atrapalha — respondeu Heitor. — Vamos, desça. Acabei de passar um
café.
Os
dois se abraçaram. Um abraço longo e apertado, repleto de ternura. Augusto se
afastou um pouco para conferir melhor o atual estado de Heitor: — Está magro,
hein! Como vamos te chamar de Gordo agora? — E os dois riram. Subiram.
Na
torre, enquanto Heitor cumpre o mando de sua compulsão – busca pôr ordem à sua
familiar bagunça sempre que há visita – Augusto analisa com cuidado os detalhes
daquele estranho lugar: qual a razão daquilo tudo, pensava ele. Que diabos uma
cozinha faz no alto de uma torre? Que diabos uma torre faz numa casa? Que
diabos uma casa faz numa ilha?
—
Mas o que te traz até aqui? — na verdade, Heitor já desconfiava o verdadeiro
motivo; perguntar só fazia parte do drama.
—
Estou estagiando no Jornal Central, me deram uma chance!
—
Puxa, mas isso é demais! Cadê as vadias? Se veio comemorar, eu exijo vadias!
—
Quem me dera! Não tenho a sua sorte, que vive cercado de água. Tô numa seca
tremenda.
—
Chora de barriga cheia — respondeu Heitor batendo-lhe com ternura no rosto —
Olhe pra você: alto, loiro: quem não te quer? E quanto a mim, gordo, feio,
velho...
—
Nem gordo nem velho! Pare de se diminuir. Só quem é visto é lembrado, esse é o
seu único defeito: você sumiu!
Gordo
olhou longe o horizonte e parecia recapitular alguma passagem penosa da sua
vida: — Não, pra mim já deu! Minha cota já foi consumida.
—
Por que é que faz isso consigo mesmo?
—
Bem, não quero voltar a falar sobre isso, você sabe. Vamos esquecer isso, okay?
O
silêncio pontuou sua presença. Verdades tácitas apertavam duramente os
calcanhares dos presentes. Um jogo de cena se fazia despropositado, mas mesmo
na presença do nada que era estar naquela parte do planeta, a verdade ainda se
apresentava tímida e não saia não fosse enroscada em palavras tortas. O que
sempre faltou na relação dos dois foi sinceridade e, sobretudo, cumplicidade.
Heitor decidiu arriscar:
—
Você está aqui por que quer me pedir alguma coisa, estou enganado?
—
Quero que me dê uma entrevista.
Heitor
suspirou como que dizendo um “puta que o pariu”. Por que sempre tinha a
sensação de que o mundo lhe queria tirar alguma coisa?
—
O que é que você não sabe sobre mim? Ou veio aqui só para pedir a minha
autorização pra publicar uma biografia minha?
Novamente
o silêncio se fez presente. Bailava feito bailarina que só baila não mais que
por prazer, alheia aos espectadores, às outras bailarinas.
—
Queria que você voltasse comigo. Já não se puniu o bastante...
—
Não, já disse que não! Ou você é surdo e nunca vai entender isso?
—
Não foi culpa sua, não foi culpa sua...
—
Pára! — gritou Heitor — Já chega! Veio aqui só para me tirar a paz?
Augusto
silenciou-se. Cabeça baixa.
Mais
um ato solo do silêncio.
—
Diga a quem quiser ouvir que não, eu não vou continuar aquela maldita história!
—
Dane-se a história. Ela é só pretexto. Por que você faz isso comigo...?
—
Com você? Acha mesmo que estou querendo te punir? Já acabou pra mim! Eu não
consigo mais viver fora daqui, isso é tudo o que eu tenho, é tudo o que eu sou.
Não quero mais.
Augusto
não conseguiu evitar uma lágrima. E o silêncio mais uma vez se fez notar.
—
Você é mesmo um covarde. Podia ter sido o meu pai, mas tem medo. Por que que
não morre já que tem medo da vida? Não estou aqui por seu dinheiro, nem pra te
matar. Só estou tentando entender, só quero entender. Não estou te cobrando:
não, você não é responsável por meu fracasso, por meu sofrimento. Mas eu acho
que tenho o direito de saber, de entender. O que foi que a minha mãe viu em
você, afinal? Meu pai era muito mais homem, ser humano, apesar de todos os
defeitos.
Falar
do pai, do ex-marido dela era o calcanhar de Aquiles de Heitor (se é que se é
possível imaginar esse disparate mitológico). Nada afetava mais Heitor do que
isso.
—
Escuta... — E respirou fundo, e pensou. E sentiu. — Por favor, vá embora! Vá
embora! Já deu por hoje. — Apoiou-se na beira da pia, cabeça baixa. Augusto
olhou ao redor com desprezo. Se pudesse, implodiria tudo com ambos dentro, mas
não devia (nem podia) fazer isso. Desceu às pressas as escadas batendo todas as
portas. Manobrou sua pequena lancha com ferocidade e rasgou a toda rumo a lugar
qualquer. Do alto da janela da torre, Gordo observava a lancha aproximar-se do
Horizonte. O sonho de Heitor era tocar com as mãos o Horizonte. Visualizava de
longe a realização de seu sonho por seu filho. Sonhava em reencontrar Sofia.
Mas pensou: “Por que mesmo é que ainda não estou morto?”.
Desceu
com todo o cuidado os degraus da escada em espiral que o conduziria até a sala
principal. De dentro da casa ouvia com grande temor a aproximação da tempestade
pelo som dos trovões, cada vez mais perto. Começou a suar e a tremer como nos
velhos tempos: aquele maldito medo de água! Lembrou que estava no meio do
oceano, afinal. Que horror! Como fora parar ali? Ele mesmo se pôs em tal
situação.
A
muito custo, girou a maçaneta da porta e foi ajudado pelo forte vento a
abri-la. A areia da praia já tomava conta do ar, e a úmida da chuva ainda longe
pré-anunciava a chegada expressa da tempestade.
Arrastando
os pés pela areia da praia, vislumbrando pelos olhos entreabertos que se
protegiam do aperitivo tempestade de areia a ressaca do mar incomodada pelo
estorvo da ilha, Heitor alcançou a ponte do Porto. Com o coração a mil, a mente
embaralhada, o estômago revirado; a carne tremula, quase se despregando do osso
tamanha instabilidade motora. A roupa encharcada de suor: um verdadeiro colapso
existencial, Heitor enfim alcança o final da passarela do Porto. Em um
verdadeiro refugo de consciência, se antecipa milionésimamente à chegada
arrasadora da tempestade e se joga no mar. Afunda feito ancora de navio.
Aprendera que, para chegar bem fundo, era importante estar com os pulmões
vazios. Tanto quanto pôde, estava livre de ar. Afinal, de que me serve o ar se
o que se quer é morrer?
Com os olhos
fechados, chegou a certo ponto e cessou a descida. Em posição quase fetal,
quando se endireitou em posição vertical, sentindo a contraditória calmaria do
fundo do oceano em relação à superfície naquele momento, pode então
reexperimentar o sentimento de paz, a mesma paz que instantes antes lhe fora,
mais uma vez, roubada. Naquele estado de plenitude atual, pôde então abrir os
olhos; logo em seguida, expirou. Preencheu-se de água e afundou.Capítulo 1:
Capítulo 2:
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